Um olhar sobre Filosofia e Educação

"Se filosofar é descobrir o sentido primeiro do ser, não é possível filosofar abandonando a situação humana: é, pelo contrário, preciso assumi-la. O saber absoluto do filósofo é a percepção" (1). Merleau-Ponty

O termo central, nesta citação de Merleau-Ponty, para iniciarmos uma discussão sobre filosofia, é percepção. Em outro momento o mesmo autor vai dizer que “a verdadeira filosofia reaprende a ver o mundo (2)”. E nesta passagem o conceito fundamental é ver. Eis então o inicio do filosofar que a princípio não está no pensar, mas no olhar. Foi assim que os primeiros pensadores começaram a filosofar, a partir do espanto, do Thaumaston, desse algo extraordinário, que surpreende através do olhar.

Se Thaumaston é nada mais que o admirável, que o fenomenal. Thaumatzein (verbo) é uma ação - é o próprio ato de olhar, de admirar-se, de perceber o mundo com espanto. Mas é uma ação de ver e olhar atentamente. E olhar atentamente significa ver com atenção, com demora, com pachorra, com amor, significa ainda o atento cuidadoso da mente a alguma coisa. Olhamos atentamente para saber o que se esconde por detrás do admirável, do fenomenal, do espantoso. Somente um olhar cuidadoso, que investiga, que espia e está de espreita consegue ver o fenômeno como luz. Isso tudo é o princípio da Filosofia, amor à sabedoria. Porque olhamos o mundo com amor (que pode ser traduzido por amizade, cuidado, esmero, zelo), pelo menos é uma forma como deveria ser olhado, contemplado e vivido.

Na verdade, estar atento às coisas, desejar descobrir seu sentido, sua essência, é um desejo de tornar as coisas claras (phaós), sem nenhuma suspeita, sem nenhuma sombra (phaiós) de dúvida. Vejamos que fenômeno significa aquilo que aparece, o que se manifesta. Quando fechamos os olhos temos a escuridão (lethé), mas ao abrirmos a luz se faz e as coisas se manifestam, diante de nosso campo perceptivo (olhar) e temos, a princípio, a luz, a verdade (alétheia).

Ora, parece que ninguém deseja viver na escuridão, a busca é pela luz (phaós), pela evidência das coisas, pelo esclarecimento, elucidação, entendimento. Ao dizer que ninguém deseja viver na escuridão, é o mesmo que dizer que não desejamos a ignorância, a ausência de conhecimento, a cegueira, ou seja, o estado da razão obscurecida, o embrutecimento, a falta de discernimento. Não aspiramos à ignorância pois, dirá Aristóteles,

“por natureza, todos os homens desejam conhecer. Prova disso é o prazer causado pelas sensações, pois mesmo fora de toda utilidade, nos agradam por si mesmas e, acima de todas, as sensações visuais. Com efeito, não só para agir, mas ainda quando não nos propormos a nenhuma ação, preferimos a vista a todo o resto. A causa disto é que a vista é, de todos os nossos sentidos, aquele que nos faz adquirir mais conhecimentos e o que nos faz descobrir mais diferenças”(3).

Nesta passagem de “A Metafísica”, percebemos uma relação do conhecimento com o prazer, que por sua vez, está relacionado às sensações, principalmente as visuais. Mas, eis que olhar somente não basta. O olhar tem que ser de Thaumazein, ou seja, olhar com paciência, diligência, com medida. Isso significa olhar como quem olha desejando tocar a essência, atingir o Bem, o conhecimento verdadeiro. Ninguém se compraz em viver nas sombras, exceto se estivermos a sombra aparentemente segura dos cavernosos centers.

Olhar por si só não delibera, não determina, é preciso educar o olhar. Vejamos, a idéia da elegoria da caverna de Platão, que é uma fascinante e ao mesmo tempo uma assustadora metáfora da condição humana. Ali dentro, no seu interior, os prisioneiros amarrados (às suas ilusões) também enxergavam. Mas enxergavam sombras. Havia ali uma luz (fogueira), mas uma luz nada comparável à luz do Sol. Neste aspecto, se Platão sugere com a elegoria a existência de dois mundos (o sensível e o inteligível), nesta perspectiva compreendemos que é possível duas realidades, a da ignorância e a do entendimento, das trevas e da luz, da estultícia e da razão. Vejamos então, que uma questão fundamental a ser apreendida do mito da caverna é a proposta platônica de educação do olhar. É essencial que aprendamos a ver, mas muito mais que isso, é preciso que aprendamos a ver com os olhos do nosso próprio intelecto.

A verdade é que não nascemos nem sábios nem bons, nos encantamos e nos comprazemos com o conhecimento, com o belo e o bem, porque é isso que nos falta. Não nascemos sabendo das coisas. É por isso que o homem, dirá Kant, é a única criatura que precisa ser educada. Nenhum outro ser vivo requer essa necessidade, precipuamente, fundamental de ser educado.

E o que significa ser educado? Significa conhecer o mundo e enxergá-lo com os próprios olhos, significa fazer uso do próprio entendimento. Sapere aude. Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento” (4) . E as causas que levam os homens a permanecerem na ignorância, no seu conforto egoísta, ilusório e sombrio - no seu quietismo nada altruísta são a preguiça e a covardia.

Conhecer, portanto é um ato de iluminação, de libertação do olhar, de esclarecimento. Eis uma tarefa de coragem que depende, a partir de certa idade, de nós mesmos. Ou seja, se permanecemos embrutecidos, vivendo em nossas cavernas, ainda que confortavelmente, a culpa não é do nosso professor/educador que talvez não soube transmitir o conhecimento. O que impede o homem de tornar-se esclarecido é a covardia e a preguiça, as quais ele próprio é culpado.

Mas por quê preguiça e covardia? Ora, porque pensar é um exercício e o fato de ser um exercício, uma atividade, pressupõe esforço. O desânimo, a inércia se dá porque é forçoso, é difícil acalmar a mente, concentrar-se numa tese ou leitura e se dedicar a alimentação da mente. Isso porque fomos habituados a alimentar somente o corpo, exercitar somente os músculos do corpo. A questão é que somos seres de consciência e isso também precisa ser exercitado. A indolência na verdade está na falta de exercício, no não cultivar hábitos de reflexão, leitura e escrita. Isso tudo num primeiro momento não é nada divertido e não é mesmo. Mas o prazer e alegria de aprender e conhecer só acontece num segundo momento. O desafio, então, está em se chegar neste segundo estágio, romper as barreiras das primeiras dificuldades.

Covardia, por um lado, talvez incida no fato de que o exercício da mente, a reflexão nos torna mais íntimo de nós mesmos, sem muito esforço, conhecendo o mundo, outros homens e a própria história da humanidade, estamos ao mesmo tempo conhecendo a nós mesmos, tendo de reconhecer nossas fraquezas, nossas demências, como também nossa capacidade para agir e fazer o bem. Por outro lado, a covardia anda de mãos dadas ao comodismo. Dirá o próprio Kant que,

“[...] é tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz às vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide à respeito de minha dieta, etc, então não preciso de esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis”(5)

Educar então significa esclarecer-se tornar-se autônomo, fazendo o bom uso da razão. Educar-se para deixarmos de ser autômatos. Significa também aceitar a ajuda daquele que deseja nos tirar de dentro da caverna. Há muitas luzes querendo ser acesas, mas por alguns motivos insistimos em mantê-las apagadas. Será que o mundo das sombras é mais confortável? Será a ignorância menos dolorosa e mais cômoda que a verdade? Enfim, ficam estas questões para reflexão.

Mas, finalmente, como tudo tende a alguma coisa. A finalidade da filosofia (enquanto ato de pensar) e da educação é a de tornar o homem melhor. Mas, ser melhor em que sentido? Ora, no sentido ético, no sentido de buscar por uma vida ética e feliz. E se a ética e a felicidade não se fazem na solidão, a sós, o fim da filosofia e da Educação é a de criar cidadania. Ou seja, uma sociedade onde homens e mulheres possam coexistir com um mínimo de paz possível. Acho que dá para terminar com essa ‘palavrinha’. Paz...

(1) MERLEAU-PONTY, Maurice – Elogio da Filosofia, pg. 24

(2) MERLEAU-PONTY, Maurice – Fenomenologia da Percepção, pg. 18

(3) ARISTÓTLES, A Metafísica, apud: Marilena Chauí, pg. 38

(4) KANT, Immanuel, Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”, pg. 100

(5) KANT, Immanuel, Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”, pg. 100-102

CHAUI, Marilena – O Olhar, Janela da Alma Espelho do Mundo.

Silvia Santana
Enviado por Silvia Santana em 09/05/2007
Reeditado em 15/07/2008
Código do texto: T480818
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