KANT e o Idealismo Alemão - Versão integral

Prefácio – o Idealismo
É consenso citar Platão como o primeiro “Idealista”, vindo logo depois as tendências que seguiram suas diretrizes, dentre as quais, a que afirmava ser a “Ideia” o protótipo, o modelo das coisas físicas, concretas. A “Ideia” como a verdadeira Realidade, já que o restante não passa de mera cópia.
Outra associação que se faz é com o “Idealismo” dos ideais, dos objetivos a serem conquistados ou dos modos de comportamento a serem seguidos etc. Nesse sentido o Idealismo atrela-se geralmente às questões éticas e/ou políticas, tais como “manter a honestidade”, “construir uma democracia” e símiles. Observe-se que se diferencia do Idealismo platônico, o qual, por considerar a “ideia” como a verdadeira “realidade”, também é chamado de “realismo” ou “realista”.
Para a Filosofia ortodoxa esse segundo sentido é de menos significado haja vista que o mais importante são os dois aspectos em que o Idealismo original é estudado:
  1. O aspecto Gnosiológico (captação de saber)
  2. O aspecto Metafísico (a essência para além da matéria)
O Idealismo, sob os aspectos acima, apresentou-se de várias maneiras ao longo da historia e especialmente na Era Moderna quando surgiram vários títulos complementares para diferenciá-las, tais como: Idealismo subjetivo, Idealismo objetivo, Idealismo lógico, Idealismo transcendental, Idealismo crítico, Idealismo fenomenológico etc. Neste Ensaio não abordaremos essa variedade, concentrando a atenção naquela tendência que é tida por muitos como a mais importante, o Idealismo Alemão, representado pelos Filósofos Kant, Fichte, Schelling e Hegel, mas recomendamos aos interessados o estudo de Filósofos como Descartes, Leibniz, Malebranche e outros devido a importância do tema no contexto da disciplina.
O Idealismo caracteriza-se por seguir para a reflexão filosófica a partir do “Eu” ou da alma, espírito, mente etc. e não a partir das “coisas exteriores”, dos objetos, dos Seres, dos fatos que estão “fora” do indivíduo. Essa preferência pelo “Eu” baseia-se no fato de ser o mesmo, fundamentalmente, um “ideador”, ou “representativo” já que o homem “representa” ou “faz uma ideia” em sua mente de todas as coisas que capta através dos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato).
E porque o Idealismo começa com e no indivíduo, paradoxalmente, alguns estudiosos compartilham da tese de que o mesmo não teve inicio com a Filosofia, mas, sim, com o Cristianismo, particularmente com Santo Agostinho.
Porém, outros eruditos, desdenham desse argumento insistindo na associação do Idealismo Moderno com a Gnosiologia. Com isso preservam a concepção de que o indivíduo é o ponto de partida do mesmo e acrescentam a noção de que o Idealismo é, na verdade, um esforço para que se possa responder a uma das principais questões filosóficas: “como, em geral, as coisas podem ser conhecidas?”.
Essa pergunta, para muitos, não pertence apenas ao campo da Gnosiologia, mas também ao da Metafísica, haja vista que para as coisas serem consideradas “Reais (ou existentes verdadeiramente em essência e não apenas como mera cópia perceptível) elas devem ser necessariamente cognoscíveis (ou possíveis de serem conhecidas).
E nesse ponto é que se chega a Kant, pois a investigação sobre os limites e a possibilidade de se conhecer as “coisas reais” é que dá forma a estrutura do seu pensamento. Tendo rejeitado as formas de Idealismo propostas por Descartes e por Berkeley, ele criou seu próprio sistema, Idealismo Transcendental, afirmando que ele seria o único aceitável.
A principal característica de sua sistemática reside no destaque que ele dá à função do “posto” ou “colocado” no conhecimento. Diferencia-se, por isso, do chamado “Idealismo Material” que é incompatível com o “Realismo Empírico”, já que para ele, esse último pode ser justificado na medida em que afirma que a existência dos objetos externos não é cognoscível através de seu percebimento direto através dos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato), mas em razão daquele objeto ter sido posto ou colocado no conhecimento; ou seja, o objeto ter sido idealizado ou representado na mente. Não basta, por exemplo, eu tocar (usar o tato) nesse computador para conhecê-lo. Eu necessito pensar, idealizar, para lhe conhecer.
Contudo, alguns estudiosos observam que esse “realismo” kantiano desaparece em Fichte e, principalmente, em Schopenhauer, que equipara o mundo à representação ou idealização do mesmo. E alguns desses sábios avançam nesse sentido afirmando que o autêntico Idealismo Alemão seria, a rigor, pós-kantiano.
Todavia, essa visão que não conta com a simpatia da maioria, pois existe o permanente reconhecimento da importância de Kant para a fundação e consolidação dessa tendência de pensamento.
Por outro lado e graças ao avanço na Filosofia contemporânea das tendências “materialistas” que propugnam que são apenas as coisas materiais que constituem a “Realidade”, vários estudiosos anunciam o declínio do Idealismo até a sua inexorável extinção. Alguns sábios renomados como Ortega y Gasset e Heidegger propuseram inclusive superar o Idealismo e o Realismo Materialista por alguma outra sistemática, mas outros importantes Filósofos refutaram essa noção apelando para o senso comum.
E outras críticas acontecem amiúde, porém ainda existem autores de grande renome que adotam o Idealismo sob o pretexto de que certas questões existenciais exigem o seu concurso para que no mínimo as investigações sobre as mesmas possam prosseguir.
Esse apego, enquanto reafirma a sua importância didática, confirma o seu caráter de libertador do homem das amarras da realidade material e são justamente essas propriedades que explicam a sua permanência e até o seu reaparecimento, ainda que tacito, decorrente do interesse pelos contextos conceituais do Conhecimento.
E dentro dessa retomada volta a brilhar o Idealismo Alemão em cujo bojo se acomoda a sabedoria dos sábios que serão estudados na sequência.
 
Aspecto Gnosiológico* - vinculação ao estudo das condições do Conhecimento. Não propõe nenhuma tese sobre a estrutura da realidade.
Aspecto Metafísico* - propõe uma teoria sobre a estrutura do real ou realidade na medida em que está ligado à consciência.

Preâmbulo sobre Immanuel Kant Parte 2
A vida e a forma de ser do filósofo Kant foram objetos de estudos de vários eruditos que foram unânimes em destacar a sua religiosidade pietista – herdada da mãe e temperada com saudável racionalismo – e a sua integridade moral. Idem em relação ao seu afinco no trabalho e a extrema regularidade de hábitos, o que, aliás, teria gerado a piada de que os seus vizinhos acertavam os seus relógios de acordo com os passeios que ele realizava diariamente com o seu cão (a sua simpatia e compaixão pelos animais tornou-se proverbial).
Mas, anedotas a parte, o certo é que Kant é considerado, segundo muitos, como o maior filósofo alemão. E mesmo aqueles que não compartilham dessa classificação são prontos em lhe reconhecer como um dos Pensadores mais brilhantes de todos os tempos.
Geralmente o seu sistema é dividido em três etapas:
  1. Período pré-critico, anterior a 1781* quando ele publicou a primeira edição de “Crítica da Razão Pura”.
  2. Período crítico, que vai até 1790 quando é publicada a terceira crítica, a “Crítica do Juízo”.
  3. Período pós-critico, que se estende de 1790 até a sua morte. 
Porém, é importante observar que essa divisão é útil apenas como uma primeira apresentação de seu ideário, não devendo ser considerada como uma espécie de “série”, pois o Pensamento kantiano é de tal grandeza e complexidade que não pode ser reduzido a divisões formais.
E foi essa complexidade, feita sem qualquer pedantismo e decorrente apenas de sua natural superioridade intelectual, que acabou se tornando um fator limitante à popularização de suas ideais, o que, com efeito, é um dado a se lamentar já que através de sua filosofia é possível absorver saberes que sustentam várias questões filosóficas, enquanto apontam as rotas seguras para o desenvolvimento humano.
Por isso, no presente Ensaio buscamos adaptar o seu modo de pensar ao discurso de nossos dias com o objetivo de trazer à luz toda a sua grandeza. Os melhores esforços foram feitos para que isso ocorresse, mas temos consciência que em face da magnitude do tema eventuais dúvidas e incorreções poderão ocorrer e por isso, desde já, colocamo-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos adicionais, ou revisões que forem consideradas pertinentes.
Breve biografia de Kant
Um século antes de seu nascimento, seus antepassados deixaram a Escócia e seguiram para Konigsberg, Prússia, em busca de redenção para sua penúria.
Ali, em 1724, nasceu Immanuel de uma senhora devota pietista, cujo fervor religioso inculcou no filho, durante a sua juventude e maturidade, severa aversão pela igreja, embora tenha contribuído para que ele mantivesse até o fim da vida a postura de puritano alemão.
O fervor materno foi, com efeito, marcante em sua personalidade, fazendo com que ele, na velhice, buscasse reaproximar-se dos pontos essenciais do Cristianismo. Mas, enquanto jovem, Kant viveu na era de Voltaire e do Iluminismo cético e apologista da Razão e ele não pôde escapar dessa influência, embora posteriormente tivesse refutado aquelas ideias.
Dentre as influências que sofreu é certo que a de Hume foi a mais sentida, sendo, no entanto, a mais combatida posteriormente.
Outra figura que teve enorme importância para que ele desenvolvesse o seu ideário foi o Imperador Frederico, o Grande, que lhe deu plena liberdade para compor, por exemplo, uma obra como “Critica da Razão Pura” que, em grande medida, colide com os dogmas religiosos considerados sagrados e, portanto, inquestionáveis. E essa proteção também lhe foi útil quando ele, em sua fase de reaproximação com a religião, escreveu textos claramente contrários à ortodoxia clerical.
A propósito dessa proteção, o filósofo Schopenhauer disse:
“Não é o menor dos méritos de Frederico, o Grande, o fato de que em seu governo, Kant poder desenvolver-se e ousar publicar a sua Crítica da Razão Pura”.
Dificilmente em qualquer outro governo, um professor assalariado (funcionário público) teria ousado uma coisa dessas e para comprovar esse fato basta observar-se que ele teve de prometer ao sucessor de Frederico que não mais trabalharia nessa direção.
De todo modo, até que ele atingisse tal porte, muito tempo já havia passado e desse modo será necessário voltar o olhar para o ano de 1755 onde o encontraremos na função subalterna de “conferencista particular” na universidade de Konigsberg, onde ele permaneceu por quinze anos, sendo que nesse período ele fez duas tentativas frustradas de alcançar o posto de Professor, sendo recusado por motivos menores.
Enfim, em 1770 conseguiu o cargo e se tornou Professor de Lógica e de Metafísica, alcançando em breve tempo pleno êxito junto aos alunos que o idolatravam. Seu principio de centralizar toda a atenção nos alunos medianos (porque os “burros” não teriam jeito mesmo e os gênios não necessitariam de mestres) granjeou-lhe o apoio da maioria, já que os extremos são meras exceções positivas ou negativas. E desse modo a sua carreira acadêmica transcorreu tranquilamente dando-lhe, inclusive, matéria para o livro que ele escreveu sobre pedagogia, no qual, segundo ele, haveriam “vários preceitos excelentes”.
Aos quarenta e dois anos, solteiro, sem filhos, com poucos amigos e hábitos modestos, vivia para o seu trabalho e para os seus estudos em tamanha placidez que seria inimaginável ver-lhe como o autor de um Sistema Filosófico que revolucionária não só a disciplina, mas também a Moral e a Teologia.
Ele próprio parecia acomodado à sua rotina, permitindo-se apenas ataques teóricos e sem maiores consequências à Metafísica que lhe parecia “um escuro oceano sem costas ou faróis” e aos adeptos da mesma, sobre quem dizia serem “moradores nas altas torres da especulação... onde há, em geral, muito vento”. A tranquilidade de que desfrutava naqueles tempos não lhe permitia supor que a maior tempestade Metafísica seria causada por ele mesmo, pois, então, os seus interesses concentravam-se apenas nas coisas concretas, materiais, físicas.
Seus estudos e seus escritos da época versam sobre planetas, terremotos, fogo, vento, éter, vulcões, geografia, etnologia e assuntos similares. E mesmo quando ele se permitia alguma ousadia como, por exemplo, defender a ideia de existência de vida extraterrestres* as suas divagações embasavam-se em dados empíricos ou racionais. A sua “Teoria do Céu”, a propósito, aproximava-se da “Hipótese Nebular” de Laplace e buscava explicar os movimentos celestes através das Leis da Mecânica.

Nota do Autor – Pietista – seita religiosa que tal qual o Metodismo da Inglaterra primava pelo rigor na observação dos preceitos religiosos e nos modos de comportamento.
Nota do Autor – Kant defendia a tese de que todos os planetas foram, são ou serão habitados, sendo que aqueles que estiverem mais distantes do Sol abrigariam, provavelmente, Seres mais desenvolvidos que qualquer espécie da Terra graças ao período mais longo de crescimento.

Em outro campo de estudo, na sua “Antropologia” ele sugere a possibilidade do homem ter uma origem animal, afirmando que em sua gênese ele fora completamente diferente do que é na atualidade. Em suas palavras:
“Não sabemos como a natureza provocou essa evolução e quais as causas que a ajudaram. Essa observação nos leva muito longe. Ela nos faz pensar se o atual período da história, por ocasião de uma grande revolução física, não poderá ser o segundo de um terceiro, quando um orangotango ou chipanzé desenvolverá os órgãos que servem para andar, tocar, falar etc. chegando à estrutura articulada de um Ser humano, com um órgão central para o uso do entendimento e evoluir gradativamente sob o treinamento das instituições sociais”.
Observe-se que ao admitir a “origem animal” e a evolução do homem, ele se opõe ao “Criacionismo” religioso; e ao especular sobre Seres extraterrestres mais inteligentes que o homem, opõe-se à ideia de sermos “o ápice da Criação” e feitos “à imagem e à semelhança do Criador”. Oposições que sinalizavam o seu rompimento com o status quo da época e o avanço que ia se concretizando em suas concepções.
Um crescimento lento e afinado com a sua citada regularidade, a qual, diga-se, talvez fosse imposta pela sua frágil compleição física. De todo modo, ele perseverou e apesar das dificuldades financeiras e de sua obscura posição profissional e social, conseguiu escrever durante quinze anos a sua obra, terminando-a em 1781, aos 57 anos de idade.
Depois, viveu para editá-la, acrescer-lhe, explicar-lhe e gozar da justa consideração que fez por merecer ao criar uma obra filosófica que é colocada entre as mais importantes de todos os tempos.
Faleceu aos oitenta anos de forma tão tranquila quanto viveu. Sua missão estava cumprida.
 
Cronologia
Nasce em 22 de abril de 1724, em Konigsberg, Prússia.
Em 1763 publicação de “O único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus”.
Em 1766 publicação de “Sonhos de um Visionário, interpretação mediante os sonhos da Metafísica”.
Em 1770 apresenta à universidade de Konigsberg a Dissertação “Sobre a forma e os princípios do mundo sensível e do mundo inteligível”.
Em 1781 publicação da primeira edição da “Crítica da Razão Pura”.
Em 1783 publicação de “Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa vir a ser considerada como ciência”.
Em 1785 publicação de “Fundamentação Metafísica dos costumes”.
Em 1788 publicação da “Crítica da Razão Prática”.
Em 1790 publicação da “Crítica da faculdade de julgar”.
Em 1793 publicação de “A religião dentro dos limites da simples razão”.
Em 1798 publicação de “O conflito das faculdades”.
Morre em 12 de fevereiro de 1804.
 
Continua...