Schopenhauer e o Idealismo Alemão - Parte IV
O Mundo como Vontade e Representação
 
Antes de Schopenhauer, Spinoza havia dito na 4ª Parte de sua “Ética” que: “o desejo é a própria essência do homem”. E muitos anos, o Hinduísmo e as suas continuações, fizeram desse mote a base de sua doutrina.

Isso colocado, o leitor (a) pode se perguntar qual será, então, a originalidade e o mérito de Schopenhauer? Sim, pois se tudo já havia sido tratado, por que coube a ele a glória de que desfruta?

São dúvidas válidas e procedentes e se deve admitir que realmente nada existe de original em seu Sistema, porém em relação aos seus méritos a ótica muda completamente, pois graças ao seu trabalho é que se popularizou essas ideias, tornando o homem mais consciente de sua responsabilidade enquanto agente ativo, ao invés de ser uma mera vitima dos golpes da sorte e de uma suposta vingança divina. De certo modo, ele contribuiu para libertar o sujeito das amarras de um hipotético Destino predeterminado. São, portanto, esse resgate, essas atualização e ocidentalização de antigos e remotos conhecimentos o que constituem a grandeza de seu ideário.

A Vontade de Viver

A quase unanimidade dos Filósofos colocou o Pensamento e a Consciência como a essência da Mente. Disso provieram os conceitos de “animal racional” e/ou “animal consciente”.

Porém, para Schopenhauer esse é um erro crasso, pois para ele a Consciência é apenas a superfície da Mente; e o Intelecto é uma mera ferramenta a serviço da Vontade, a verdadeira essência da mente, do homem e do mundo. Uma “força vital” imperiosa, que pode ser consciente ou inconsciente.

Às vezes pode parecer que o Pensamento ou Intelecto a dirigem, mas como bem exemplificou o filósofo é justamente o contrário, sendo a Vontade “o vigoroso homem forte, porém cego, que carrega o homem aleijado que enxerga”. O Intelecto assume o papel de órgão de visão, de instrumento ou ferramenta, para que a Vontade chegue aonde almeja. A rigor nós não desejamos algo porque temos motivos para lhe desejar. Nós encontramos motivos, válidos ou não, para justificarmos aquele desejo.

Chegamos até a criar filosofias, Teologias e Tratados Científicos para disfarçar os nossos desejos com o intuito de enobrecê-los, tornando-os mais aceitáveis e por isso Schopenhauer disse que o homem é o “animal metafísico”, já que é o único que procura transcender seus desejos tentando elevá-los da esfera do simples querer.

E esse jugo da Vontade é de tal modo atuante sobre o homem que para convencê-lo de algo não basta fazer uso da boa e correta Lógica se ele “não quiser” entender e concordar. É preciso convencer a sua “Vontade”. Fazer com que ele “queira” compreender, mesmo que para tanto seja necessário apelar para os seus interesses pessoais, os quais, aliás, são capazes até de aguçar o raciocínio dos homens menos inteligentes; e de agilizá-lo e fortalecê-lo quando existe algum tipo de ameaça ou de necessidade premente.

A dura luta diária que o homem trava por comida, sexo e descendência é a expressão mais visível desse predomínio. Dessa inelutável “vontade de viver”. E de “viver plenamente”. Nas palavras de Schopenhauer:

“Só aparentemente os homens são puxados pela frente; na realidade, são empurrados por trás. Eles pensam que são conduzidos pelo que veem, quando na verdade são levados adiante por aquilo que sentem – por instintos cujo funcionamento ignora na metade das vezes. O Intelecto é meramente o ministro das relações exteriores (sic). A natureza criou-o para servir à Vontade”.

E porque a natureza criou o Intelecto nessa condição inferior, ele é capaz de saber as coisas que interessam à Vontade, mas é incapaz de compreender a essência da mesma, tal qual um martelo que não consegue entender o que o faz chocar-se contra o prego.

A Vontade, por essas características, é o único elemento imutável da mente, pois ao contrário do Intelecto, da Memória etc. ela não se modifica em casos de distúrbios mentais, como se pode observar nos dementes que conservam integralmente os seus desejos. É claro que a Vontade mais básica, a de viver, em certos casos pode minguar ao ponto do indivíduo cometer suicídio, mas ainda assim a Vontade se manteve inalterada, pois ele quis morrer. Exercitou, portanto, a Vontade.

E é graças a essa imutabilidade que ela dá unidade à Consciência e mantêm conectados os pensamentos, as ideias; ademais, também resulta dessa continuidade de propósitos o próprio caráter do individuo. A esse respeito, aliás, a sabedoria popular privilegia intuitivamente o indivíduo “bom de coração” em detrimento daquele que possua uma “mente brilhante”, o qual pode até conquistar admiração, mas não o afeto que é dedicado ao outro.

O próprio corpo físico é um produto da Vontade, bastando observarmos que o sangue é empurrado por aquela ânsia que chamamos de “vida”, “impulso vital” etc.; que a vontade de saber é que constrói o cérebro, que o desejo de segurar é que modela as mãos etc. para comprovarmos essa assertiva.

O ato da Vontade e o movimento do corpo não são duas coisas distintas, diferentes e nem acontecem segundo a Lei de Causa e Efeito. Na verdade, a ação do corpo é a objetivação, a concretização, do ato da Vontade e por isso as partes do corpo correspondem aos desejos através dos quais a Vontade se manifesta. São as expressões visíveis desses desejos, como, por exemplo, os dentes, a garganta e intestino são a “fome objetivada”; os orgãos reprodutores são o “desejo sexual materializado” ou o sistema nervoso que é o conjunto de “antenas” que capta as Vontades exteriores e emite as interiores. Nas palavras de Schopenhauer:

“O corpo humano é a Vontade em seu aspecto geral, sendo cada organismo individual, a objetivação da Vontade Geral adaptada para aquele indivíduo”.

A Vontade como Essência do Mundo

Assim, após demonstrar que a Vontade é a real essência do homem, Schopenhauer avançou em sua tese colocando a seguinte questão:

E não será a Vontade, também a essência da vida em todas as suas formas e até da matéria inanimada? Não será ela a “coisa em si” kantiana?

É uma opção tentadora achar que sim, pois a Lógica* favorece essa aceitação, sob a pena de continuarmos acreditando que a mesma fica apenas circunscrita ao campo da mágica e do misticismo. Vejamos, por exemplo, a questão da Causalidade, ou Causa e Efeito: Diante da dúvida levantada pelo filósofo Hume – o que é a Causalidade – pode-se responder que ela é a “Vontade”, haja vista ser ela a “Causa” que produz todos os “Efeitos” em nós e no universo todo.
 

A Vontade como concretização

Em termos filosóficos, ainda não sabemos definir com precisão absoluta o que seria a “Força”, a “Gravidade”, a “Afinidade”, a “Repulsão” etc. O que sabemos limita-se ao que há de material nesses elementos, mas em termos de “realidade última”, “essência” etc. elas continuam a serem ilustres desconhecidas.

Porém, nesse quesito, já podemos ter algum vislumbre acerca da “Vontade” e graças a tal conhecimento podemos ousar dizer que ela é a cristalização daquelas e doutras forças, tais como a atração, a combinação, a decomposição, o magnetismo, a eletricidade, a gravidade etc.

Dessa sorte, podemos imaginar que quando Goethe batizou um de seus belos romances como “Afinidades Eletivas”, ele estava expressando intuitivamente essa teoria, tornando igual a força de atração que há entre os amantes com a que existe entre os planetas.

O Instinto e a Vontade

Tornou-se célebre a disputa entre Aristóteles e seu mestre Platão acerca da “localização” da Ideia, enquanto modelo e essência das coisas físicas. Enquanto o mestre a situava fora do indivíduo, o discípulo insistia em sua interioridade, argumentando existir uma “Força Interna” que modela as formas respectivas nos homens, nos animais e nos vegetais.

E Schopenhauer encampou a tese aristotélica ao igualar, ou melhor, ao considerar o Instinto como a expressão mais clara dessa “Força Interna” ou da Vontade. E dentro dessa linha de raciocínio, ele passou a investigar o instinto nos animais, porque neles essa força não sofre a ação redutora da racionalidade e nem a castração produzida pelo adestramento social que o homem sofre. Nos animais seria possível observar o “Instinto” em estado puro; e, nele, a Vontade.

E esse raciocínio se adéqua às outras formas de vida, como, por exemplo, nos vegetais. Aliás, quanto mais se desce na escala biológica, mas se percebe o declínio do Intelecto, mas não o da Vontade. Nas palavras de Schopenhauer:

“Aquilo que em nós persegue seus fins à luz do conhecimento, aqui apenas luta cega e silenciosamente de maneira unilateral e imutável. Em ambos os casos, deve ser classificada sob o nome de Vontade”.

O instinto dos animais* produz uma ação similar a que resulta de uma concepção racional, sem que, no entanto, tenha havido qualquer operação intelectual. Quando, por exemplo, um cão nos toca com a sua pata para que atendamos a um desejo seu, o resultado é o mesmo que aconteceria se ele tivesse planejado intelectualmente fazer isso: nós o atendemos. E de modo semelhante é o que acontece no restante da natureza, quando efeitos acontecem apenas por obra da Vontade.

E sendo a Vontade a essência da Vida, ela é, sobretudo, a Vontade de Viver, tendo como perpétua inimiga a morte, a quem, todavia, ela consegue superar através da reprodução, como veremos logo adiante.

Nota do Autor – e como Filósofos, convido o leitor (a) a refletir se a Lógica é tão confiável que nela podemos acreditar piamente? É essa a mágica da Filosofia, a eterna possibilidade do contraditório.

Nota do Autor – atualmente a inteligência racional nos animais* é objeto de estudo e de várias opiniões, mas na época em que viveu Schopenhauer nem se cogitava que ela existisse.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Relações Públicas, no Rio de Janeiro, em Junho de 2014.