Schopenhauer e o Idealismo Alemão - Parte V -
A Vontade de reproduzir-se.

A Vontade de Reproduzir-se.
Quando um fio de cabelo morre e se desprende da cabeça, o dono da cabeleira não sofre qualquer pre-juízo, pois morreu apenas uma das formas da vida que nele havia e que será substituída adequadamen-te.
O mesmo acontece com a Vida em geral. Quando uma de suas manifestações falece, seja um homem, um animal ou um vegetal, em nada a afeta, tanto pela insignificância do indivíduo no contexto geral, quanto pelo fato de que a sua reposição ocorrerá segundo as regras de reprodução de cada reino e espécie.
Mas, poderia o leitor questionar essa convicção absoluta, alegando que uma catástrofe poderia ex-tinguir a totalidade da vida no planeta e até no uni-verso conhecido.
No terreno das possibilidades, deve-se admitir que existe, sim, tal possibilidade, porém é imperioso atentarmos para o fato de que o conceito “Vida” ultrapassa o universo conhecido, tanto em termos espaciais, quanto em termos de conhecimento, pois, atualmente a possibilidade da vida existir noutros lugares e sob outras formas deixou de ser uma questão de misticismo, de superstição e de ficção cientifica para se tornar uma possibilidade real ou, até, uma probabilidade cada vez mais evidente.
Embora a nossa tecnologia ainda não tenha sido capaz de contactar essas outras formas de seres viventes, as descobertas que acontecem com certa regularidade, mesmo quando circunscritas à Terra, aconselham-nos a ter a mente aberta para aceitarmos todas as possibilidades, como no caso das novas espécies reveladas ou daquelas que vivem onde antes se julgava impossível, como acontece com os chamados “extremófilos”,
Afastado, portanto, esse contra-argumento, vemos que a Vida, a Vontade, triunfa sobre a morte atra-vés da reprodução, que é o objetivo máximo de todo ser vivo. É o instinto mais forte que atua no homem, nos animais e nos vegetais, porque só assim a Vontade pode vencer a sua eterna inimiga.
E é justamente para garantir essa vitória que a Von-tade de Reproduzir está acima de qualquer controle da Razão, da reflexão e, até, das conveniências sociais. Está acima, inclusive, dos outros interesses que o indivíduo possa ter, os quais, aliás, só existem porque são facilitadores da reprodução. A mulher, por exemplo, que se interessa em manter-se bela, inconscientemente atende aos desígnios dessa Vontade. O homem que se interessa em ficar rico, no intimo e talvez inconscientemente, busca ter mais parceiras para se reproduzir etc. Nas palavras de Schopenhauer:

“A Vontade se mostra, aqui, independente do conhecimento e funciona cegamente, como numa natureza inconsciente. (...) Devido a isso, os órgãos reprodutores são, adequadamente, o foco da Vontade e formam o polo oposto ao cérebro, que é o representante do conhecimento. (...) Eles são o principio que sustenta a vida – garantem a vida eterna; por essa razão, eram adorados pelos gregos no phallus e pelos hindus no lingam. (...) Hesíodo e Parmênides diziam, de forma muito sugestiva, que Eros é o primeiro, o criador, o principio do qual se originam todas as coisas. A relação dos sexos (...) é, na realidade, o invisível ponto central de todos os atos e condutas, e está se deixando entrever em toda parte, apesar de todos os véus lançados sobre ela. É a causa das guerras e o fim da paz; a base do que é serio e o alvo da pilhéria; a inexaurível fonte de espírito, a chave de todas as ilusões, e o significado de todas as insinuações misteriosas* (...). Nós a vemos, a todo instante, sentar-se, como a verda-deira e hereditária senhora do mundo, pela plenitude de sua própria força, no trono ancestral; e de lá, com um olhar de desdém, rir dos preparativos para confiná-la, aprisioná-la ou, pelo menos, limitá-la e, sempre que possível, mantê-la escondida, e mesmo assim dominá-la a fim de que ela só apareça como uma preocupação subordinada e secundaria da vida...”.

Interesses tão exigentes que precisaram ser disci-plinados por uma série de convenções sociais e que necessitam ser disfarçados para que a sua satisfação não colida com as ideias plantadas pelos hábitos religiosos e comunais. A partir dessas necessidades o homem criou uma série de pseudos sentimentos e de ritos e liturgias que teoricamente o enobrecem e com isso facilitam a sua aceitação. A seguir veremos a questão do “Amor” e da reprodução.

Nota do Autor* - observe-se aqui que Schopenhauer propõe a ideia que posteriormente Freud adotou acerca dos desejos reprimidos, que se manifestam disfarçados.

O disfarce do Amor.
“O amor é a melhor eugenia” Will Durant.
A frase acima, do ilustre filósofo e escritor estadu-nidense, poderá soar desagradável para os adeptos do Romantismo e inaceitável para aqueles que veem no termo “eugenia” uma seleção preconceituosa e nefasta, tal como a que foi utilizada pelos nazistas no seu delírio de “raça pura”.
É óbvio, porém, que o sentido que o estadunidense lhe deu foi outro, pois, apesar de ser desagradável para os citados acima, a verdade inelutável, segun-do Schopenhauer, é que o encontro entre dois seres é ordenado pela natureza com o fim precípuo de se conseguir a melhor reprodução possível para que expressão de Vida ou da Vontade que resultar do encontro a consolide cada vez mais.
Contudo, essa rejeição ainda vigora com intensida-de e à época de Schopenhauer causou um verdadei-ro escândalo, pois, ainda mais que atualmente, o homem acreditava piamente ser membro de uma espécie que se situa acima das outras e até mesmo das Leis Naturais. Amparava-lhe essa jactância a glorificação dada ao Racionalismo Materialista, ao Otimismo filosófico e ao sempre presente Roman-tismo, além das instituições criadas durante milê-nios, como a Religião, por exemplo. Esse conjunto fornecia-lhe os falaciosos argumentos com que escamoteava a sua mísera condição de ser apenas membro de uma das espécies que formam a fauna que povoa um obscuro ponto no universo.
Mas, apesar de toda censura, ele persistiu em sua teoria, afirmando que o “Amor”, a escolha do par-ceiro (a), visa inconscientemente à cria perfeita que fortalecerá a Vontade. Em suas palavras:

“Cada qual procura um companheiro que vá neutralizar seus defeitos, para que não sejam transmitidos; (...) um homem fisicamente fraco vai procurar uma mulher forte. (...) Cada qual irá considerar bonitas em outro indivíduo as perfeições que lhe faltarem; mais ainda até as imperfeições que forem opostas às suas. (...) As qualidades físicas de dois indivíduos podem ser tais, que, para o fim de restaurar tanto quanto possível o tipo da espécie, um deles será especial e perfeitamente o complemento e suplemento do outro, que, portanto, irá desejá-lo com exclusividade. (...) A profunda consciência com que consideramos e avaliamos cada parte do corpo (...), a escrupulosidade crítica com que olhamos para uma mulher que começa a nos agradar (...) o indivíduo age, aqui, sem o saber, por ordem de algo superior a ele mesmo. (...) Todo indivíduo perde a atração pelo sexo oposto na proporção em que ele ou ela se afasta do período mais indicado para gerar ou conceber: (...) juventude sem beleza ainda exerce sempre uma atração; beleza sem juventude, nenhuma. (...) Em todos os casos em que o indivíduo se apaixona (...), a única coisa visada é a produção de um indivíduo de natureza definida, o que pode ser confirmado primordialmente pelo fato de que a questão essencial não é a reciprocidade do amor, mas a posse”.

E por isso, prossegue o filósofo, nenhuma união é mais destinada ao fracasso que o chamado “casa-mento por amor”, pois a natura pouco se importa se os cônjuges serão felizes por toda vida ou se por minutos apenas, já que para os seus propósitos só lhe interessa a reprodução resultante do enlace.
Ainda segundo as suas concepções, o amor é uma mera fantasia criada pela mente humana para digni-ficar um desejo que a religião o adestrou a conside-rar pecaminoso e sujo. Assim sendo, está destinado a terminar tão logo o objetivo reprodutivo tenha sido alcançado.
Aqui, rogo aos leitores, que antes de vociferarmos contra a sua “suposta insensibilidade, típica de um desajustado social e talvez sexual”, examinemos sem pré-conceitos as suas assertivas.
O primeiro ponto seria a questão da semântica, pois se substituirmos o nome “amor” por “paixão”, nós facilitaremos a concordância com os seus argumen-tos. Reservemos, portanto, o termo “amor” para nomear aquelas outras afeições que podemos sentir por algo ou por alguém, embora essas mesmas a-feições também sejam, a rigor, comportamentos ditados pela Vontade, haja vista que visam, ainda que inconscientemente, a manutenção da vida indi-vidual e a da espécie, com o amparo e o abrigo de amigos e familiares.
Feita essa distinção, seremos obrigados a convir que a “paixão” é, com efeito, limitada no tempo e suscetível de se romper com o avanço da rotina, das pequenas desavenças e com o acúmulo das obriga-ções cotidianas. Resta como suporte aos relaciona-mentos, sejam eles ortodoxos ou heterodoxos, as conveniências sociais e/ou familiares e/ou financei-ras, além de casos eventuais de amizade entre os cônjuges, de acomodação, de temor da solidão e até mesmo, em casos raríssimos, a manutenção daquela paixão inicial.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de RP. no Rio de Janeiro, no Inverno de 2014.