Ensaio sobre o amor científico (ou a faculdade de música)

Sou formado em música e recebi o convite para tocar violão em uma apresentação final de disciplina. Impossível não lembrar do processo de formação acadêmica: conhecimentos, desconhecimentos, amigos, amores, paixões, aborrecimentos, maturação, tristeza e uma porção de coisas. A faculdade mudou minha vida, basta resumir que ao ler Freud deixei de acreditar em Deus e Nietzche destruiu qualquer efeito religioso em minha Vida. Talvez seja difícil compreender, mas esse efeito foi vital. Voltamos então ao motivo inicial: tenho que tocar violão na universidade em que bacharelei. Fui o primeiro a apresentar, seguido por diversos alunos de múltiplas especializações em música. Engraçado que sempre quis tocar do jeito que me apresentei: nenhum erro, música clara, som limpo e bonito. Toquei Pixinguinha, o acompanhamento no violão. Engraçado constatar que essa clareza conquistada custou a ausência de sentimento, o “deixar-se tocar” pela música. Um ímpeto fez com que eu quisesse permanecer ali para ver as apresentações dos estudantes, mesmo que tal ato significasse a perda da manhã de estudos.

Um tenor que canta Villa-lobos acompanhado por pianista. Normal. Excluindo o fato que, em certo momento, o cantor pigarreou e teve que parar: “da capo, por favor. Pela manhã é complicado”. Risos, comentários bondosos e maldosos dos colegas. Tive que recordar da questão da natureza humana e da imperfeição, somos seres inacabados. Um erro e somos nocauteados. O cantor seguiu, dessa vez de modo agradável e eu gostei. Quis permanecer ali.

Outro grupo: violão, piano e canto. Música: não lembro, uma balada brega. Deixou-me fascinado a semelhança daquela balada brega com a canção romântica de Villa-lobos. Deixou-me ainda mais fascinado o fator de transformação. Aquela quebra de paradigma jamais ocorreria em minha época acadêmica. Vale lembrar que estudei ali não faz nem meia década. Durante meu tempo (que não faz tanto tempo), sofria pressões para aderir à música erudita. Eu deveria reconsiderar minha predileção pela música do mundo e abraçar o academicismo eurocêntrico da música de concerto. Hoje eu saberia me defender com mais armas: alguns professores universitários não possuem a consciência do discurso classista que é a preferência pela música erudita. A própria palavra “erudição” quer segregar algo. Nascer é um ato político e não podemos ignorar que o Brasil é um país em que se precisa de dinheiro para seguir com os estudos. Nem todos tem a sorte de nascer na minoria dominante e não devemos perder o interesse em abraçar o lado humano, em agregar ao contrário de segregar. Nascer é um ato político: nem todos possuem orientação para seguir os estudos. Enquanto seres educadores devemos compreender a complexidade cultural do mundo em que vivemos. Se sou educador não posso concordar com a predileção pela música erudita e a negação do folclore dito desdenhosamente popular. Naquela sala de aula fui feliz em constatar a transformação: em minha época não poderíamos cantar uma balada brega em sala de aula.

Um novo grupo: pianista e cantora. Percebi a juventude e a esperança naqueles olhares. Uma incerteza de tudo e a certeza que tudo pode dar certo. A música de Vinícius de Moraes e Claudio Santoro, Acalanto da Rosa. Nunca gostei dessa canção e, no entanto, aquela menina cantando era algo extremamente belo e o piano lindamente doce. Não existe cientificismo para expressar aquilo que senti. Então lembrei dos amores e amigos que tive na faculdade, os amores e amigos que vivem em mim e que quando cruzam meu olhar em uma calçada, simplesmente desviam. Por vaidade, ego, orgulho? Um pouco tudo isso, um pouco é a Vida mesmo. Lembrei que foi na faculdade que fiz meu último poema de amor para o último amor que perdi. E também a última canção de amor que compus para a mulher que amo. Pensei na fragilidade das relações humanas e nos laços que unem o convívio com os queridos: é tudo sutil e frágil. Amar nos tempos de hoje também é um ato político e corajoso.

Agora um violoncelista jovem e seu instrumento. Um guitarrista tropeça e deixa o violoncelo do colega cair no chão. Eu ficaria extremamente irritado. Deu-se então algo lindo, a convulsão de risos amáveis e a humanidade daquele celista: tropeçar acontece. Aquele jovem é um grande músico. Não sei de sua sorte, sua classe e não interessa sua cor. Mas pensei em todas as crianças, jovens e adultos que sonham em estudar um instrumento e não puderam. De certo modo fui um deles. Quanto riso despedaçado! Existe uma lei no Brasil que regulamenta o ensino de música nas escolas. Lembrei de Rosseau: não pode existir Estado sólido quando o poder executivo não acompanha o poder legislativo. A música nas escolas não ocorre na prática e, assim, temos a continuação de uma sociedade aculturada que é diariamente marginalizada e transfigurada de suas raízes desde o pseudo descobrimento das Américas. Enquanto educador não posso aceitar o discurso fatalista do neoliberalismo econômico: as coisas não são, elas estão! Meu pensamento foi interrompido pelo final da música. Foi o violoncelo que me levou para todo esse pensar? A música faz pensar. O professor da turma perguntou, referindo-se à composição:

- Alguém sabe o que ele tocou?

A resposta chegou em coro entusiasmado: violoncelo!

Soltei um riso descuidado em coro com a turma. Por fim as apresentações acabaram e eu estava explicavelmente feliz. Tive a certeza de que os momentos mais felizes de minha vida ocorreram quando abracei o conhecimento e ingressei na faculdade. Quantos jovens terão essa oportunidade? Quantas crianças estão na escola? Quantas crianças estão na escola e lá não estudam música e, por isso, não poderão cursar uma boa faculdade de música? O amor científico hoje não é romântico, mas ainda é amor, também ato político e social. Minha religião é a Música, meu deus é a Vida. Não posso explicar isso cientificamente, é algo espiritual. Mas as coisas não são: elas estão e podem mudar.