Sonho Poema Ideograma: a poética em Freud

Sonho Poema Ideograma: a poética em Freud

O sonho, o poema e o ideograma formas distintas que se equiparam em seus mecanismos de construção, que possuem organização e lógica próprias. O encontro que diferentes teóricos viveram da equiparação entre essas formas ofereceu-lhes apoio, força de averiguação, constatação de suas teorias, e alento. Sonhos poemas ideogramas, distintos entre eles, falam o mesmo idioma.

Expressão de Haroldo de Campos, rosácea de convergências refere-se a acontecimentos sincrônicos nos mais diferentes lugares geográficos, distintos campos teóricos pensadores filósofos. E o inesperado. Mallarmé está na rosácea de Campos, como uma das figuras mais importantes. O poeta escreveu: Um lance de dados, jamais abolirá o acaso. Entre outros artistas_ poetas escritores pintores, França, Rússia, Brasil, Estados Unidos, Alemanha, Japão, outros. No livro Ideograma, lógica, poesia e linguagem Haroldo vai tratar dos acontecimentos que cercaram o nascimento da poética não somente para a literatura, como para todas as formas de arte. E para nós a convergência incluirá a psicanálise. E diria eu, incluirá a vida. Costumamos deixar a vida de fora.

As convergências desses encontros se dão em temporalidade específica, mais precisamente, em um hiato de tempo. Para nós, aqui reunidos, interessam os acontecimentos que se desdobraram dos fins do século XIX à segunda metade do século XX. A psicanálise mudou o mundo; a poética também. E muitos outros diferentes movimentos em diferentes países enriqueceram nossa humanidade. Precisamos nos apropriar desses encontros e lutas, estudar e pesquisar, pensar, indagar. Nossa riqueza, a possibilidade de pensar. E pensando englobar a complexidade.

Complementando para nós a ideia de Haroldo de Campos, Susanne Langer, a primeira filósofa americana, e uma das primeiras mulheres a buscar a carreira acadêmica, nos EU, traz a questão da ideia disseminadora e contagiante de uma época. Ideia que se encontra em um campo de possibilidades virtuais, que podem ou não se atualizar, se realizar, ganhar o mundo. A ideia contagiante entre o final do Século XIX e até pelo menos os anos 80, do Século XX, para Suzanne Langer é o Simbolismo. A filósofa criticou o positivismo e estudou o simbolismo. Viveu até 1989, completando 90 anos.

Descobriu duas raízes simbólicas diferentes, as formas racionais discursivas, e as formas lógicas do sentimento humano, ou formas expressivas, ou ainda formas estéticas. Cada uma dessas diferentes formas simbólicas possuem leis e organização próprias. Langer chamou as formas lógicas do sentimento humano de outra semântica, para não passar sua vida brigando com os linguistas. Por semântica ela compreende articulação com sentido. Por volta de 1920 Langer encontra o livro de Cassirer, As leis da Imaginação, que muita influência teria sobre seu pensamento. Em 1940 conhece o próprio Cassirer. Percebendo sua fundamentação, nunca mais se afastaria dela, até sua morte, em 1945. Cassirer, outro expoente de nossa rosácea de convergências.

Susanne Langer, ainda jovem, aponta Freud como o primeiro a investigar as formas lógicas do sentimento humano, ou formas expressivas de percepção e de consciência, na pesquisa e interesse do psicanalista pelos sonhos. Mesmo antes de A interpretação dos sonhos, podemos nos lembrar nos “Primeiros Estudos da Histeria”, Freud se encantando com a forma de consciência sonhadora de tecelãs ocupadas ao tear. Em “A interpretação dos sonhos” Freud pesquisa os ideogramas chineses, com a esperança de encontrar algumas similitudes com os sonhos. E tanto encontra que equipara o conteúdo manifesto do sonho ao ideograma.

O conteúdo manifesto do sonho correspondente ao ideograma seria uma linguagem outra, que precisaria ser transposta através da interpretação do analista, ao pensamento latente do sonho, que Freud chama de pensamento normal, o que compreendemos como discursivo. Por este movimento de Freud, Suzanne Langer diz que ele encontrou as formas lógicas do sentimento humano, descobrindo os mecanismos de organização e construção do sonho, mas no lugar de privilegiar a forma significante, Freud privilegiou o motivo significante. As formas significantes nunca poderiam ser compreendidas por uma lógica estranha a elas.

Freud, entretanto, desmentindo a ele mesmo, estabeleceu as regras da escuta flutuante, pelo analista, e a fala de livre associação do paciente, que de discursivas nada possuem. Uma sessão analítica é da ordem do sonho, assim como a escuta do analista, que o paciente recebe como outra ordem de escuta, diferente da escuta do lugar comum, muitas vezes e quase sempre em sua vida. A escuta analítica foi ilustrada por Freud em Sonhos e delírios da Gradiva de Jensen. No conto de Jensen a jovem escuta o arqueólogo no contexto de seu delírio, e ele se cura. A escuta do analista se dá no contexto da fala do paciente.

Para Langer, no interesse pelos sonhos Freud chega às formas lógicas do sentimento humano. Mas ele foi além, Langer diz, pois, se condensarmos os pensamentos freudianos espalhados e esparsos em folhas e mais folhas em que escreveu dos sonhos, chegamos às mesmas leis da imaginação às quais chegou o filósofo Cassirer. Palavras da filósofa.

A poética em Freud é densa e estruturada. Ele não chamou de poética, sabemos. Expressão inexistente em sua época. Investigando minuciosamente, os mecanismos de construção dos sonhos, em A interpretação dos sonhos, publicado em 1900: a condensação, o deslocamento, as condições para a figurabilidade, as formações secundárias, equiparando o conteúdo manifesto do sonho ao ideograma, estabelecendo a regra da escuta analítica, Freud se encontrava sem o saber com os mecanismos da poética, e com os procedimentos estéticos na criação do objeto de arte. Não era este seu objetivo, sabemos. Nesse sentido foi absolutamente intuitivo. E outros aspectos.

Em 1900 a Poética apenas se insinuava nos horizontes do pensamento ocidental, ainda sob o jugo do positivismo. O positivismo aceitava, por exemplo, a linguística estrutural de Ferdinand de Saussure, mas não seus exercícios anagramáticos, que esse estudava na solidão de suas noites, lendo e anotando os poemas da poesia grega antiga e védica. O terror de um pensador pode ser real. Saussure nunca contou de suas descobertas anagramáticas a nenhum de seus discípulos. As anotações ocultadas foram descobertas e publicadas por Starobinsk, bem após a morte de Ferdinand, sob o nome de Palavras sob palavras.

Em 1919 Das Unheimlich foi publicado. Quando o espanto ocorre, momentaneamente, deixamos de compreender, pois, a vida e as coisas surgem sob outras luzes. Do espanto nasce o conhecimento, diz Platão. Ferreira Gullar em sua crônica de 8/9 relata que seus poemas nascem do estado peculiar que ele chama de espanto, quando a vida deixa de fazer sentido. Para ele este estado é aquele em que nascem seus poemas. No espanto os signos, os objetos, as palavras e outros saem de seus contextos corriqueiros e banais. Imaginemos uma cena: o discursivo linear e sincrônico se rompe. Mas o fenômeno não acaba aí, pois, da ruptura emerge outro contexto, o inusitado. O espanto poderia vir de um ato falho, o que costuma ser engraçado. Ocorreu com Freud ver um homem envelhecido, mal vestido e pouco simpático, quando estava num trem, em uma de suas viagens à Itália. Em seguida se dá conta, o homem era o seu vulto refletido na vidraça. Tratam-se de outras formas de percepção e de consciência, as que Susanne Langer chamou de formas lógicas do sentimento humano.

Também em 1919, o formalista russo, Victor Chlovski, escreve o texto ao qual chama: A arte como procedimento. Para Chlovski o procedimento estético do artista seria o de criar um contexto estranho e fora do lugar comum da linguagem. VC tratou da obra literária, mas a criação do contexto em procedimento estético vale para todas as formas de arte. E também para a escuta do analista.

Ao falar da pesquisa dos ideogramas Freud avisa: “não pensem que conheço a fundo esse assunto; pesquisei os ideogramas na esperança que tivessem alguma correlação com os sonhos, esperança plenamente recompensada”. De onde ele tirou seus dados? Haroldo de Campos conta, no livro aqui citado, que os primeiros estudos de sinólogos chegaram à Europa por volta do século XVII. E eram chineses, chegando à Europa, trazidos por pesquisadores ocidentais. Os inquietos.

Até aqui andamos dos fins do século XIX á secunda década do século XX. Na década de 1950, por volta de 1956, o russo Roman Jacobson, aproveitando as descobertas dos formalistas russos, da Escola Linguística de Praga, e suas próprias inquietações, faz a distinção entre as funções referenciais e as funções poéticas da linguagem. A funções referencias da linguagem vem das referências do suposto saber, as pseudo-garantias, que nos chegam de um mundo já pronto e sabido: os pressupostos. As funções poéticas pertencem ao contexto do procedimento estético, regidas pelas leis de seu próprio contexto. Por exemplo, cada ideograma é significado pela combinação dos caracteres que o forma. As funções referenciais correspondem às formas discursivas. As funções poéticas de Jacobson, correspondem às formas lógicas do sentimento humano, de Susanne Langer.

Essas questões que venho pesquisando desde mais de vinte anos. Posso dizer que acredito Freud foi um importante precursor da poética. A poética não existia como ciência naquela época, mas descobrindo os mecanismos de construção dos sonhos, os da escuta analítica, atos falhos, chistes e outros, seus encontros teóricos ganham importância correspondente aos encontros teóricos da poética. Conhecimentos absolutamente contemporâneos. São os mecanismos que usamos tanto na arte como procedimento, como nos procedimentos estéticos da psicanálise do terceiro milênio, nossa escuta, por exemplo.

Freud equiparou o sonho ao ideograma. Ernest Fenollosa, também na rosácea de convergências, americano, foi dar aulas de filosofia (Hegel) no Japão quando este recém se abria ao ocidente. Deixou a filosofia e deu aulas de poesia chinesa a alunos japoneses. Em seus estudos compreendeu que as regras da composição da poesia chinesa, eram as mesmas regras que os poetas ocidentais usavam em suas composições. Fenollosa equiparou a poesia ideogramática ao poema ocidental. O encontro de Fenollosa me permitiu, no mestrado, a equiparar o poema ao ideograma, e como Freud havia equiparado o sonho ao ideograma, pude reunir os três: poema, sonho e ideograma. Meu mestrado foi um caminho de sete anos.

A poética é uma caixa de conceitos-ferramentas. Deles nos apossamos para nosso uso. Evidentemente, instrumentos não utilitários, eles jamais nos ajudariam a trocar uma lâmpada... Deleuse e Guattari nos legaram não apenas a ideia dos conceitos-ferramentas, como a ideia da teoria viva para usarmos como instrumento em nossas vidas e trabalhos, criando e vivendo nossos espaços potenciais. As ideias crescem qualitativamente, e queiramos ou não: ou somos devir, ou petrificamos.

Reli o livro Ideograma, lógica, poesia e linguagem, de Haroldo de Campos. O livro A palavra in-sensata, poesia e psicanálise está esgotado. Há um exemplar na Biblioteca Madre Cristina. A bibliografia e todos os autores aqui citados entre outros mais está nele.