Trabalhando a psicanálise

A psicanálise é ampla, e cada psicanalista encontrará seus diferentes recortes. Considero a psicanálise da ordem da poética. Há uma poética em Freud, contemporânea e sincrônica às descobertas e à criação da poética e da semiótica, no século XX. Por exemplo, o capítulo VI de A interpretação dos sonhos trata dos mecanismos de construção do sonho: a condensação, o deslocamento, as condições para a figurabiliadade, e as associações secundárias. O quarto mecanismo se refere às associações do sonhador, ou seja, à livre associação. São esses os mecanismos usados pelo poeta, para criar o estranhamento do contexto-poema. O sonho cria contexto, o poema é contexto criado pelo poeta, e a sessão analítica um contexto criada pela escuta do analista. Na psicanálise recorro bastante aos textos da poética, de Freud. Se arte e psicanálise, para mim campos de diferentes práticas, são, entretanto, sincrônicos. Como diria Winnicott, vivemos de paradoxos.

Seguindo, ao escrever o poema o poeta cria um contexto de estranhamento, no qual, cada elemento ou cada signo tem relação com todos os outros signos. Cada signo ou elemento é imprescindível ao contexto do poema. Caso retirado um elemento, ou acrescentado outro, não mais seria aquele poema. Este contexto é o do estranhamento.

A escuta analítica usa de mecanismos para ver/escutar o paciente no contexto da sessão, muito semelhantes aos que o poeta usa ao escrever o poema.

O objeto de arte não é propriedade de ninguém, nem de seu autor. Possui vida virtual, estará em vir-a-ser, e cada receptor-estético terá nele um objeto diferente. O objeto de arte é uma potência realizada, ou seja, passa do campo de possibilidades à realização do artista. Apesar de realizado, possuirá sua vida virtual, em permanente vir-a-ser. As qualidades do objeto de arte agem no receptor estético, provocando/criando afecções e percepções no sujeito, impacta. Como a psicanálise, e como a terapia para o par terapêutico, de maneiras diferentes.

Para Gilberto Safra, psicanalista, professor e eminentemente um clínico, a criança significa suas experiências tanto pelo uso da linguagem discursiva, que ela desenvolverá em sua relação com a mãe (a família, e/ou o meio ambiente), como também pela articulação de formas estético-simbólicas no campo sensorial das vivências.

Não podemos contar a uma criança (ou a um paciente) como é o mundo. Podemos ajudar uma e outro a significarem suas experiências, e assim, não apenas a descobrir, mas a criar suas próprias e singulares concepções de mundo, da vida, de si, e de suas relações com o outro.

Em Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques, José Buendia, inesperadamente, revela à Úrsula e aos filhos, A terra é redonda como uma laranja. Úrsula, sensata, manda seu marido calar a boca, Para de assustar as crianças.

A criança cria sua poética (seu estado/e ou maneira de estar na vida) através do uso da cor, da luz, do espaço, do tempo, do tato, das sensações e das experiências. E o paciente também. O que é objetivamente percebido pode vir a ser subjetivamente concebido. Ou seja, pode tornar-se uma concepção subjetiva. Safra chama esses processos de articulações das sensações e das experiências, de uma outra semântica, não discursiva. Na linha de Susanne Langer. (Discípula de Cassirer que estabelece as diferenças entre as formas simbólicas discursivas, representativas, e as formas simbólicas expressivas, apresentativas,; uma e outra possuem lógica, mas duas lógicas diferentes entre si).

No seu conceito de símbolos orgânico-estéticos Safra usa Susanne Langer, mas vai além, encontrando uma analogia “de orgânico não material, com o organismo vivo”. Para ele as vivências e percepções humanas são vivas, têm vida própria, no sentido virtual e imanente. E cada elemento da composição da vivência e ou percepções-estéticas possuem singularidade quetornam o objeto indispensável ao contexto da composição. Nossas vivências e percepções criam memórias prospectivas. As memórias não pertencem apenas ao passado. Ele cita as formulações de Solovyov (1878) sobre “organismo”:

“Não há fundamentos para limitar o conceito de organismo somente aos organismos materiais. (...) nós chamamos de organismo qualquer coisa que seja composta de uma multiplicidade de elementos que são absolutamente imprescindíveis e necessários para o todo, e uns para os outros; pois cada um desses elementos tem seu conteúdo determinado e, consequentemente, sua significação particular em relação a todos os outros elementos.” Safra: pag 25

Concepções que certamente influenciaram Kandinski, o pintor russo que buscou criar uma teoria poética da pintura. Kandinski foi pintor, professor de pintura, pensador, e concebeu símbolos orgânico-estéticos, o orgânico na pintura. E o conceito de transcendência, para a pintura, e para a arte. Ou seja, o conceito de sagrado, não religioso.

A concepção dos símbolos orgânico-estéticos chegou até mim através da prática de pintar no atelier do professor de pintura SF. Mesmo que já estivesse em meus horizontes. No atelier Sergio e seus alunos conversam de mestres de pintura, outros pintores, concepções de arte. Este é o meu quinto ano como aluna de SF.

Gilberto Safra:

“considero oportunas as características do que SL denomina símbolos apresentativos. O que não aprecio é sua ideia de que este tipo de símbolo seja criado a partir de, ou veicule, uma concepção. Penso que se trata de uma articulação orgânica de experiências estéticas do estar vivo, os sentidos do encontro com o outro, as posições que o individuo ocupa no mundo humano”. Quando posso ver/escutar um conceito rico como este, vivo um espanto.

O espanto é da ordem do estranhamento. Aproveito para contar que Fingermann estabelece a diferença entre olhar e ver. Dizendo que o pintor precisa ver. Aprender a ver. Ver, no sentido de Sergio é o olhar que estranha, e pode ver o nunca visto antes. O que só adquirimos com o tempo, e muito trabalho. Como nós que aqui estamos também.

Mas, voltando a Safra: o ser humano é muito complexo, e se forma em paradoxos. Somos constituídos pelas duas formas simbólicas, a representação, que é lógica, analítica e etc. E os símbolos apresentativos, que possuem uma outra lógica, distinta da lógica racional discursiva, da linguagem referencial.

Na clínica, segundo Safra, vemos que muitas vezes o discursivo não cobre toda a comunicação. O paciente se apresenta, e exprime o que Gilberto chama de “seu estilo próprio de existir” através de gestos, tonalidade da voz, maneira de se vestir e outras. Safra diz que esses símbolos não são passiveis de decodificação discursiva, por exemplo, não podemos explica-los. pag 25/26.

Mas podemos chegar aos símbolos apresentativos por outras vias: uma delas, seria o/a analista observar o paciente, olhar o paciente com o olhar de ver. Não pode explicar, mas pode descrever o que vê, por exemplo, como vê o paciente se apresentar, sua expressão facial, seus gestos, sua voz.

Uma paciente que chegou há três anos, médica, agora com 31 anos, entrava na sessão encolhida, com grandes olhos arregalados, e um fiapo de voz. Falei a ela que via tanto susto nela, que ela parecia um bichinho com muito medo. Do que será que ela sentia tanto medo ali no encontro comigo. Ela contou que sentia muito medo sim, ali e com as pessoas em geral, embora fosse respeitada no seu trabalho, e tivesse bons amigos. Precisava ser muito boa em tudo o que fazia. A partir de minhas observações de sua postura, de seu tom de voz, de suas roupas e etc, fez alguns sonhos recorrentes:

“Entrava em um parque, e havia pessoas e uma mesa cheia de comida gostosa. Doces e salgados, comida de festa. Todos comiam menos ela, ela não podia comer, a mãe aparecia, por exemplo, e falava que para comer ela tinha que pagar, e ela não tinha dinheiro”.

Trabalhamos na direção do medo “de não ter para ela”, da mãe impeditiva, e etc. Em outro momento observei, por exemplo, que ela não se vestia adequadamente no sentido muito básico. Podia ver e observar, claramente, em dias frios ela passar frio, a roupa era muito leve. Ou então, comprava sapatos que machucavam seus pés.

Ela precisou muito de minhas observações, pois, não sabia como se vestir. Conta a história da bota inadequada quando foi ver a neve em uma montanha canadense, com os pais. Tinha 6 anos, e os pais brigaram com ela porque. aquela bota que usava não era a bota certa, e seus pés quase congelaram, por culpa dela. Hoje há momentos em que ela se aconchega, deitada no divã.

Na arte e como terapeutas não oferecemos garantias, estamos em estado de risco, e convidamos o paciente a isso, a experimentar o estado de risco. O que acontece conosco, porém, é que o estado de risco passa a ser nosso cotidiano.

O que não significa cair do céu. No atelier de Sergio Fingerman os alunos descobrem que a arte não é expressão. É disciplina. Ele usa muito a metáfora do teatro, os pintores seriam para a tela, como um diretor de teatro é para a montagem de uma peça. Como “diretores” precisamos olhar a tela, ver, escutar, sentir os cheiros no ar, a atmosfera. Perceber o que fazemos acontecer nela: o que aquela cor faz ali? É um ator que compõe? Decompõe? O que acrescenta esta pincelada? Cada elemento tem sua vida própria. Uma pincelada mais longa pode ser um dos elementos não convidados, que não acrescentam ou decompõe. Há muito assunto? O que precisamos apagar? Disciplina. Ficamos menos impulsivos e mais reflexivos. Para o professor a intuição é um dom, que sozinha não serve para nada. Precisamos de lógica. Aí, um dia contei a ele que meu marido se diz cartesiano. E ele respondeu: Qualquer lógica é bem vinda. Até a cartesiana? Perguntei. Até a cartesiana. Me respondeu.

1) Olhar de longe a tela em que trabalhamos.

1) A subjetividade X a ontogênese.

2)Formas de subjetivação X a singularidade é a marca de cada ser humano.

(Fecho com um pequeno fragmento clínico:

Um paciente, primeira geração nascida no Brasil, de pais japoneses, que aqui chegaram, na época da segunda guerra mundial. Segundo o psiquiatra que o indicou, “ele sofria de rigidez de pai”.

No seu conceito de símbolos orgânico-estéticos Safra usa Susanne Langer, mas vai além, encontrando uma analogia “de orgânico não material, com o organismo vivo”. Para ele as vivências e percepções humanas são vivas, têm vida própria, no sentido virtual e imanente de criar para nós memórias prospectivas de nossas experiências, e não apenas as memórias do passado. Ele cita as formulações de Solovyov (1878) sobre “organismo”):

((Em “Corpo-de-sonho, arte e psicanálise”, há um capítulo que trato da voz humana, e trabalho com Paul Zunthor, medievalista que criou o conceito de vocalidade, ou seja, no lugar de oralidade, chama a voz humana de vocalidade. Acabando com as dicotomias entre profano e sagrado, oralidade e escrita, e outros. Para Zunthor, o que aqui chamamos de símbolos apresentativos pertencem à esfera da voz, e não da fala. Mas também para Zunthor, a voz e tudo que a compõe, é indissociável da fala. As duas são esferas diferentes, e indissociáveis, coexistem no ser humano e na cultura. Para Zunthor o conceito de vocalidade acaba em definitivo com a ideia de um homem universal. A voz da idade média, da renascença, de nossos dias.)

(Para Susanne Langer a ilusão primária da literatura é a vida, e a matéria prima do poeta, a palavra. A ilusão primária do pintor é o espaço, e sua matéria prima tintas e pincéis. A ilusão primária do músico, o tempo, e sua matéria prima, o tempo, os instrumentos musicais, e por aí iríamos. Acontece, porém, todas as artes são aparentadas entre si, e se atravessam, uma dependendo da outra. Uma forma de arte não sobreviveria sem a outra. E também nós, pois a arte é parte de cada um de nós. Vida está em nós, nas artes e nas coisas que fazemos).

(As artes são aparentadas com os mitos, as religiões, com os sonhos, e com a escuta analítica, e por aí iríamos. A escuta analítica leva o paciente e seu analista ao sítio do estrangeiro, ao estranhamento, o lugar no qual não se sabe, a priori. Este não é o lugar da linguagem discursiva, ou referencial. Esta nos conta que cadeira é cadeira, mesa é mesa, pedra é pedra. Adélia Prado diz que no dia em que olhar para uma pedra e ver uma pedra, ela morre.

)