ARTE E PSICANÁLISE: tentativas fracassadas de narrar

ARTE E PSICANÁLISE: tentativas fracassadas de narrar

Não se pode contar a uma criança (ou a um paciente) como é o mundo. Podemos acompanhar a uma e ao outro nas reflexões de significar as suas experiências. Me refiro a momentos em que alguém acompanhado pelo outro, não apenas descobre, mas cria concepções singulares de mundo, da vida, de si, e de suas relações com o outro. Aqui não estaríamos falando em passado nem em recalcado, mas em memórias prospectivas, em gerúndio, no que se está vivendo no momento. O que poderia vir no encontro com a obra de arte, ou das lembranças da infância, que Proust chamou Tempo Perdido, outras. A arte é percepção estética, uma das dimensões de ser humano, como também os sonhos, religiões, mitos, entre outras articulações. Diferentes percepções estéticas.

Em Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques, José Buendia revela à Úrsula e aos filhos, reunidos à sala das refeições:

_ A terra é redonda como uma laranja.

Úrsula, sensata, impaciente, cansada da lida com a sobrevivência da família, manda o marido calar a boca.

_ Hombre de diós, para de aborrecer as crianças.

O momento de José Buendia é o de apresentar ao outro, Úrsula e filhos, uma vivência ontológica, no encantamento de alguém que concebeu e criou o mundo. Na nossa vida somos os dois personagens, Buendia e Úrsula, temos sonhos, temos preocupações.

Vivo as relações entre arte e psicanálise desde 1979, quando comecei a formação em psicanálise. Entre 1983 e 1990 o mestrado e o doutorado. Há cinco anos aulas de pintura com Sergio Fingermann, o que trouxe diferença qualitativa em meu percurso. Manusear material plástico junto ao professor e aos colegas, colocar as mãos na tinta, carvão, grafite, sujá-las e sujar a roupa como uma crianças ao brincar. As palavras na literatura e na poética são material palpável, sensíveis, plásticas. O poeta literalmente põe a mão na massa. Mas pintar me torna menos mental, menos impulsiva. Tento me fazer compreender:

A palavra é o material plástico do poeta (e da psicanálise). Na busca da palavra enquanto palavra, entretanto, somos facilmente capturáveis pela língua do cotidiano. A língua é a estrutura, a palavra é a expressão. Estão juntas, mas se diferem. Uma precisa da outra. Corremos o risco do ficar reféns da língua enquanto lugar comum, inclusive, o risco de usar a linguagem defensivamente, sem perceber. Quando ocorre, não podemos mais encontrar as palavras sob as palavra, a plasticidade da palavras. E ficando sem a palavra material ninguém faz arte. Quando pinto estou menos vigilante, mais entregue e ingênua como uma criança, pois, pintar para mim é muito novo, um novo idioma que aprendo. Ou a possibilidade de me perder no Jardim Zoológico, um texto em que Walter Benjamin narra lembranças de sua infância.

Nas aulas de pintura escuto a expressão: “Esta pintura está orgânica”. O que significa? Para meu professor significa que todos os elementos da tela têm relação entre si. O conceito da percepção-orgânico-estética começou, então, a me rondar e interessar particularmente. Da psicanálise ele me chegou lendo Gilberto Safra. Da pintura, através das aulas com Sergio Fingermann.

Em “A face estética do self”, Gilberto Safra revela a analogia do orgânico não material, com o organismo vivo. Para ele as vivências e percepções humanas são vivas, têm vida própria, no sentido virtual, imanente, e transcendente. Cada elemento da composição possui singularidade, o que o torna indispensável ao contexto da composição. (É assim na constituição do sonho, na fala e na escrita ideogramática, e no procedimento estético que é o poema).

Gilberto cita as formulações do russo Solovyov (1878) sobre “organismo”:

“Não há fundamentos para limitar o conceito de organismo somente aos organismos materiais. (...) nós chamamos de organismo qualquer coisa que seja composta de uma multiplicidade de elementos que são absolutamente imprescindíveis e necessários para o todo, e uns para os outros; pois cada um desses elementos tem seu conteúdo determinado e, consequentemente, sua significação particular em relação a todos os outros elementos.” Safra: pag 25

As concepções de Solovyov, me parece, podem ter influenciado Kandinski, o pintor russo que buscou criar uma poética da arte de pintar. Kandinski pintor, professor de pintura, pensador, deixou textos escritos. Fingerman conta, é de Kandinski o conceito de transcendência para a pintura,

e para a arte. Ou seja, o conceito do sagrado não religioso.

Sergio Fingermann diz: tal pintura assim/assado é uma pintura orgânica, referindo-se a algum dos trabalhos de seus alunos. Trata-se de um orgânico não material, no qual todos os elementos do quadro/pintura estão relacionados entre si. Em outras palavras, no atelier de Fingermann trabalhamos com outra sorte de materialidade: a materialidade da pintura, das artes plásticas. Ali alguns praticam gravura, e uns poucos, a escultura. O professor repete (com diferenças): Não é a tinta nem são os pincéis, é o uso que o artista faz deles, o uso que faz de si, o uso de olhar para seu interior, para sua tela e para o mundo. Assim, cuidamos de ver/olhar para o dentro e para o fora. Enquanto expressões o dentro e o fora se incluem uma a outra. Da tela emanam sensações que nos afetam, a nós, espectadores vivos, em atividade e movimentos anímicos.

Fingermann nos diz da importância dos legados de Kandinski. E eu diria que no coletivo dos alunos do Sergio, praticamos o conceito de um orgânico não material, pintando e nos afastando da tela para olhar de longe para o que pintamos. É impressionante como, então, vemos o que não podíamos ver quando estamos junto à tela. Também somos convidados a olhar o que os outros pintam. Tomamos distancia da pintura, quase que em dança. Através do distanciar para olhar e ver, muitas vezes esbarrando uns nos outros, mergulhados que estamos no trabalho, concentrados e distraídos para o fora da pintura, distraídos de nós mesmos, somos além do eu.

No atelier o professor frequentemente avisa da importância de parar no acostamento da estrada, sair da pista de alta velocidade, para a qual nos leva nossos problemas cotidianos. No acostamento podemos usar a prática de criar uma materialidade palpável como a das sensações, como a do corpo-de-sensações, diria eu, criar o corpo-de-sonhos (In: Corpo-de-sonhos, arte e psicanálise”).

Instados a frequentar espaços de exposição, outros ateliers e/ou museus, o Brasil fica pequeno, queremos o mundo inteiro; queremos o MASP, a Pinacoteca, a Avenida Paulista, Barcelona, Provence... Descobrimos surpreendidos, a cada dia, a diferença entre uma cadeira e uma pintura. A voz humana é invisível, mas a escutamos, e ela deixa marcas, pura impressão digital. E na pintura instalados, o visível e o invisível. Um dos procedimentos do pintor poderá ser desconstruir o construído, apagar o visível. Ou apagar o excessivo, que o professor chama muito assunto. Fazer emanar o silêncio.

Fingermann estabelece a diferença entre olhar e ver. Para ele o pintor aprende a ver. Trata-se de um olhar criado através do tempo de prática, de muito trabalho e dedicação, de fé e confiança. Em nossa pesquisa de como trabalhamos, precisamos da descoberta de qual método cada um de nós usa para pintar o que pinta. Ou seja, descobrimos as regras e as leis criadas que vamos usar e aplicar na própria pintura ou tela. O método e as leis são singulares, cada pintor cria as suas, o seu. Fazer arte exige custos, pagamos preço.

Na arte a intuição pode ser dom, mas sozinha serve para nada; ou serve para nos levar à arte. Entregamos a intuição ao comando da consciência. O método de trabalho é que é chamado de procedimento estético. Cada artista desenvolverá o seu, na duração de seu processo. A intuição se juntando à consciência? Paradoxal? Sim, elas coexistem e interagem na vida, em uma e em outra.

Mark Rothko trabalha com cores, mais do que formas/ou e desenhos. Não se trata em Rothko de pintar paredes, uma brincadeira entre colegas... Rothko cria com as cores camadas sobre camadas, entremeaduras, tessituras, e através dos entremeios pode-se ver o interior do interior, sem nunca ter fim. Ou seja, ver o que não vemos. Sergio chama as pinceladas do(s) artista(s) de narrativas fracassadas de narrar. Kandinki, por seu lado, usa formas/desenhos no seu método de transcender. E por aí vamos adentrando no desconhecido que podemos conhecer. Um pouco.

Diria Gilberto, na linhagem de Winnicott: O que é objetivamente percebido pode vir a ser subjetivamente concebido, na presença do outro que testemunha e significa.

1) - Trata-se de um processo de articulação das sensações e das experiências, de uma outra semântica, não discursiva. Em 1941 Susanne Langer, discípula de Cassirer, estabelece as diferenças entre as formas simbólicas discursivas, representativas, e as formas simbólicas expressivas apresentativas; uma e outra possuem lógica. Mas duas lógicas diferentes entre si.

Gilberto Safra continua, dizendo que se trata de uma articulação orgânica de experiências estéticas dos sentidos de estar vivo, do encontro com o outro, das posições que o individuo ocupa no mundo humano. Não se trata aqui da lógica discursiva, mas de outra lógica, a dos processos apresentativos.

Para Safra: o ser humano é da ordem da complexidade, e se forma em paradoxos. Somos constituídos pelas duas formas simbólicas, a representação, que é lógica, analítica, reflexiva, e etc. E a os símbolos apresentativos. Estes possuem uma outra lógica, distinta da lógica racional discursiva analítica explicativa, que é aquela da linguagem referencial.

Na clínica, segundo Safra, vemos que muitas vezes o discursivo não cobre toda a comunicação. O paciente se apresenta, e exprime o que Gilberto chama de seu estilo próprio de existir através de gestos, tonalidade da voz, maneira de se vestir e outras. Safra diz que esses símbolos não são passiveis de decodificação discursiva, por exemplo, não podemos explica-los. pag 25/26.

Mas podemos sim, chegar aos símbolos apresentativos por outras vias: uma delas seria o/a analista observar o paciente, olhando-o com o olhar de ver, e assim, usar a possibilidade de descrever/narrar ao paciente o que vê:

Como esse se apresenta, sua expressão facial, seus gestos, sua voz. Aqui não seria uma interpretação. Usando e me apoderando da expressão de Sergio Fingermann, tentativas fracassadas de narrar, seria como se contássemos ao nosso paciente um conto de fadas, no qual ele reconhece sua história não apenas do passado, mas do presente, que ali na sessão, ele segue construindo. Quando Sergio Fingermann se refere ao ver, na arte, inclui a escuta, assim como a todos os sentidos possíveis ao humano. Não haveria divisões possíveis quanto aos sentidos humanos, um inclui o outro, pois,coexistem e são ideogramáticos.

Acho que, na verdade, todos temos nosso tempo perdido, proustiano, e nossas lembranças criam memórias, como faz Walter Benjamin, em suas crônicas publicadas e reunidas em: “Obras escolhidas II, Rua de Mão Única”.

Fazendo arte e como terapeutas não oferecemos garantias, estamos em estado de risco, e convidamos o paciente a isso, a experimentar o estado de risco. O que acontece conosco, porém, é que o estado de risco passa a ser nosso cotidiano, em nossas tentativas fracassadas (e inacabadas) de narrar.