Voltaire e o Iluminismo francês - Parte V -
Cândido (o Otimismo), Ferney
Devido, então, à proibição de voltar à França Voltaire mudou-se para “Les Delices” e logo depois se transferiu para Ferney, uma localidade limítrofe à Suíça e a França, onde ele se fixou até o fim da vida.
Suas constantes idas e vindas anteriores não se deveram apenas à inquietude de seu espírito, mas, também, às perseguições que sofreu; porém, ali, ele encontrou a paz e a segurança de que necessitava. Um plácido refúgio.
E na nova vivenda permitiu-se viver de forma pacata, porém o mundo culto não podia prescindir de sua erudição e não tardou para que o assédio voltasse a lhe perturbar o sossego.
A exemplo de Cirey, a nova casa se tornou a “capital intelectual da França”, para onde acorriam padres céticos, aristocratas libertinos, cultas senhoras, jovens estudantes e estudiosos não tão jovens.
Não eram raras as visitas de homens ilustres, como, por exemplo, as dos historiadores Gibbon e Boswell, da Grã Bretanha; dos Filósofos franceses d´Alembert (1717-1783) Helvetius (1715-1771) e de vários outros adeptos do Iluminismo.
Um fluxo interminável de admiradores que agradava ao filósofo, mas como ele era sabidamente econômico, logo começou a se ressentir pelos gastos que representavam; e seus protestos, feitos com suas tradicionais e espirituosas tiradas, tornaram-se proverbiais, como as que seguem:

“Voltaire para um hóspede: - qual a diferença de vós para Dom Quixote? Ele confundia estalagens com castelos, e vós confundis este castelo com uma estalagem”.
“Deus me proteja de meus amigos; dos inimigos, eu mesmo cuido”.


E além das visitas pessoais, o assédio também se dava por via postal, tornando-o um contumaz correspondente de importantes figuras da Europa, como o Rei Gustavo III, da Suécia, que se declarava privilegiado e honrado por saber que às vezes Voltaire interessava-se por seu reino, o que constituía o estímulo necessário para que os suecos tentassem ser sempre melhores; o rei Cristiano VII, da Dinamarca, que lhe pedia desculpas por não ter conseguido, ainda, implantar todas as medidas que ele preconizara; a grande soberana russa Catarina II que lhe enviava presentes valiosos e sempre se mostrava preocupada em estar incomodando-o; e vários outros luminares da época. E até mesmo Frederico, o Grande, não resistiu à sua genialidade e pediu humildemente para retornar ao “rebanho”, através de uma missiva em que consignava a sua admiração, dizendo que: “serieis perfeito, se não fosses homem”.
Uma verdadeira torrente de loas, de elogios e, talvez, de afeto e de admiração sinceros. Tudo, em suma, que deveria alimentar a conhecida extroversão de Voltaire; mas, para surpresa geral, aquele anfitrião tão alegre, acabou se transformando em um dos expoentes do Pessimismo filosófico. A imagem daquele farrista que brilhava nos salões de Paris, que havia visto e vivido o melhor lado da vida, apesar da Bastilha, ainda estava presente na lembrança de todos, mas já não era real.
Por baixo de sua imperturbável amabilidade e fineza, crescia-lhe um severo sentimento de contestação contra aquele “Otimismo exagerado” que havia se tornado a última moda nos círculos cultos e sociais, sob o patrocínio de importantes Pensadores, dos quais, o exemplo mais claro era o filósofo Leibniz.
As perseguições que sofrera e os desencantos e as desilusões que experimentara haviam desgastado a sua fé na vida e nos homens. E a sua descrença aumentou quando um terrível terremoto devastou Lisboa, Portugal, em 1755, deixando mais de trinta mil mortos e um sem número de feridos, desabrigados, arruinados e desamparados.
E como se não bastasse a extensão da tragédia, amargurava-lhe profundamente a atitude cínica e sórdida da Igreja que logo se pôs a afirmar que o cataclismo era “castigo de Deus” aos pecados do povo lisboeta, que deveria, então, tornar-se mais submisso ao divino, através de “seus representantes”. Mais que a tragédia, doía-lhe ver a exploração que os maus carateres faziam em cima do sofrimento de tantos. Doía-lhe a maldade do homem.
Ademais, para agravar ainda mais o seu sofrimento, poucos meses após aquele terrível desastre, eclodiu a chamada “Guerra dos Sete Anos”, que para ele era mais outra sandice humana; um mútuo suicídio que a França e Grã Bretanha cometiam em troca de um prêmio constituído por somente “alguns acres de neve no Canadá”.
E como ele rejeitava a opinião do filósofo Spinoza de que o “Bem” e o “Mal” são apenas conceitos humanos, nem essa janela ele pôde utilizar para amenizar o seu sofrimento. Pôde, apenas, externar a sua consternação através de um poema que compôs sob o mote do velho dilema: ou Deus pode evitar o mal, mas não quer; ou quer evitá-lo, mas não pode.
Todavia, esse mesmo poema, causou-lhe outro aborrecimento, quando o filósofo Jean Jacques Rosseau o repeliu, argumentando que, em verdade, a culpa pelas mortes em Lisboa era exclusivamente de seus habitantes, pois “se os homens não vivessem agrupados nas grandes cidades, uma tragédia como aquela não atingiria a tantos”; além disso, “se os homens vivessem sob o céu aberto, as casas não lhes cairiam na cabeça”. Argumentos, no mínimo, questionáveis, mas que ainda assim seduziram a maioria da população, para assombro e indignação de quem tivesse um pouco de bom senso.
Para Voltaire essa nova comprovação da estupidez humana foi a gota que faltava para transbordar o jarro da paciência. Transtornou-o completamente. Não lhe era possível aceitar que aquela teodiceia pudesse existir entre Seres que se julgam racionais; tampouco, que diante de tantas tragédias ainda houvesse tanta resignação covarde e tanto otimismo infundado.
De onde vinha esse desejo absurdo de ser ludibriado? Essa ingenuidade de crer num Deus infinitamente bom, incapaz de causar qualquer dano? Por que aceitar que a culpa dos infortúnios seja sempre dos homens? Por que acreditar que esses infortúnios são “produzidos” apenas para aumentar-lhes a coragem e a determinação? Ou, que sejam “Castigos Divinos” merecidos?
Não! Não lhe era possível calar-se frente a tamanha insanidade e a sua resposta foi fulminante, pois em apenas três dias ele escreveu uma de suas obras-primas mais conhecidas: Cândido (ou Otimismo).
Usando a “mais terrível de todas as armas intelectuais já brandidas, o escárnio voltariano”, em meados de 1751, ele compôs esse pequeno livro que conta as histórias do epônimo, um rapaz simples, honesto e ingênuo, filho do Barão de Tlunder-Tem-Trockh da Vestfália e discípulo do “filósofo” Pangloss.
O jovem Cândido vive incríveis aventuras tragicômicas no amor, na guerra, nas amizades, nos negócios etc. E em todos os campos a maldade humana e a severidade da natureza estão presentes, ocasionando-lhe uma série de sofrimentos; os quais, no entanto, segundo lhe assegura Pangloss, só existem em seu beneficio, haja vista que o farão tornar-se mais forte, inteligente, rígido de caráter etc. Ademais, ainda prega Pangloss, todos os sofrimentos são benéficos por mostrarem a infinita bondade do Criador (sic)1.
Em termos literários, o livro é uma joia rara, pois apresenta numa linguagem agradabilíssima e com toda a profundidade necessária a infame hipocrisia teológica, a governamental e a social. Um clássico, sem dúvidas, que mereceu de Will Durant (EUA – 1885-1981) e de Anatole France (França 1844-1924), respectivamente, os seguintes comentários:

“Nunca o pessimismo foi demonstrado de forma tão alegre; nunca se fez o homem rir com tanto gosto enquanto ficava sabendo que este mundo é um mundo de desgraças. E raramente uma história foi contada com uma arte tão simples e oculta; é pura narrativa e puro diálogo; nada de descrições para encher linguiça; e a ação é desenfreadamente rápida”.

“Nos dedos de Voltaire, a pena corre e ri”.

Na sequência abordaremos a obra mais conhecida de Voltaire, o celebrado “Dicionário Filosófico”.

Nota do Autor1 – aqui, o leitor (a) já pode vislumbrar uma prévia da crítica de Nietzsche sobre a moral cristã que prega haver virtude no sofrimento.

Produção e divulgação de Pri Guilhen, lettré, l´art et la culture, Assessora de Imprensa e de Comunicação. Rio de Janeiro, inverno de 2014
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