Sobre paredes fechadas, uma reflexão sobre o tempo

Sobre paredes fechadas, pequena reflexão sobre o tempo

Toda vez que descia ou subia a Rua das Casinhas, na altura do número 270, olhava meio de rabo de olho para o lado. É que lá até 3 dias atrás existia o que eu chamava de “uma casa do tempo”, melhor explicar: Uma oficina para consertos e também comércio de relógios, mesmo com olhar apressado era possível observar e ouvir; carrilhões, relógios-cuco (muitos), relógios de parede, relógios-pulseira, relógios digitais, como também algumas ampulhetas, óbvio que apenas ornamento. Havia também vários rádios antigos, inclusive um capelinha.
Gostava de passar ao meio-dia e da calçada dava para ouvir ao mesmo tempo: - “tique-taque, tique-taque, tique-taque”, “bleim, bleim, bleim”, “cuco, cuco, cuco”, “tim, tim, tim - eu tenho quase certeza que este era o som de um daqueles relógios em que um bonequinho ou bonequinha sai de uma casinha e batia num sininho – perdoem o excesso de diminutivos, é que imagino que eles deviam ser pequenininhos mesmo.
Eu só passava, olhava para a loja e pensava: - “Esses relógios e rádios antigos podem dar belas fotos e talvez até um texto”.
E porque não entrava logo e pedia para tirar fotos, conversava com o relojoeiro e depois pensava num texto?
Pelo motivo mais besta do mundo.
O relojoeiro, seguramente com mais de 80, dono da oficina, era de uma sisudez tremenda, passei ali por anos a fio e nunca, absolutamente nunca, vi aquele homem sorrir, brincar com uma criança, olhar uma moça bonita, olhar para o céu - razão pela qual, imagino eu, a oficina estar sempre vazia de fregueses - Quando muito eu o via chegar até à porta, verdade é que nunca também ouvi sua voz.
Nas tardes, religiosamente nas terças e sábados, reunia-se um pequeno grupo de velhos na oficina, provavelmente amigos do relojoeiro e todos também pareciam não ter muita afinidade com o riso; todos de cara fechada, vetustez total. Mas eram corteses, cheguei a ver (e não foi apenas uma vez) eles tirarem sacos de lixo e outros objetos da calçada (as calçadas da Rua das Casinhas nesta parte da cidade são extremamente estreitas) para as pessoas poderem passar.
Mas, vamos e venhamos. Eu poderia ter ao menos tentado fazer minhas fotos e puxar conversa com o velho, não sou exatamente um bom exemplo de cara de pau - mas admito que já fui muitas vezes – e afinal de contas, aquilo era uma porta aberta, um comércio; poderia muito bem ter levado um relógio meu (que está parado, faz tempo) para o homem dar uma olhada.
Mas não fiz isso; a alegação mentirosa de falta de tempo aliada à cara amarrada do homem não deixaram que eu entrasse pela oficina, conversasse e talvez descobrisse uma pessoa maravilhosa, tirasse minhas fotos e fizesse meu texto.
- “Amanhã eu faço isso” – dizia.
Qual nada, dizem que desculpa de aleijado é muleta, e por muitas vezes, o amanhã pode não chegar.
Foi exatamente o que aconteceu; no último sábado percebi uma movimentação estranha na loja, um pequeno caminhão e uma Kombi chegaram e três pessoas começaram a esvaziar a pequena loja/oficina e o dono não estava junto.
No domingo nada aconteceu, dia feriado.
Na segunda encostou outra Kombi (não era a mesma), desceram dois homens, um beirando 30 anos e outro; mais novo; 19, 20 anos, alguns minutos depois já havia 5 sacos de cimento, uma considerável pilha de tijolos, e talvez cal na calçada; um andaime foi improvisado na parede.
Num primeiro momento pensei numa reforma, mas não! No terminar da segunda-feira o serviço estava feito, a porta fora totalmente emparedada, sem acesso para rua. É no mínimo estranho um cômodo emparedado, sem janelas, mas foi o que fizeram.
Pensei com meus botões – “Lá se foi a chance (de muitos anos) de você fotografar vários relógios e rádios antigos e bonitos, fazer um texto e quem sabe? Fazer uma boa amizade.”
À noite, folhei alguns jornais e acabei encontrando na edição do domingo passado:
“Faleceu ontem, às 12:00 horas, o Senhor fulano de tal, o de cujus contava 88 anos, solteiro, porém deixa uma filha (a vida tem dessas coisas, isto não estava no obituário, eu que escrevi), antigo morador da cidade e com casa comercial de artefatos para relojoaria sito na Rua das Casinhas...”
E a lição que fica? Uma das mais velhas e propagadas do mundo
“Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje” – ao menos não procrastine por anos a fio; mesmo que tenha que enfrentar uma cara amarrada.
E daqui algumas horas será ano novo.
Mauro Guari
Enviado por Mauro Guari em 31/12/2014
Reeditado em 07/03/2015
Código do texto: T5086372
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