A MAÇONARIA ROSA-CRUZ
 
O Simbolismo da Rosa-Cruz

     O simbolismo da Rosa-Cruz reflete a profunda interação existente entre as três grandes tradições que mais influenciaram o pensamento humano na época de transição entre a chamada Idade Média e a Idade Moderna. Ele é o fruto das grandes mudanças ocorridas no cenário cultural do mundo ocidental, com o advento dos movimentos que ficaram conhecidos como Reforma Protestante e Renascença. A primeira, como se sabe, provocou verdadeira revolução no campo da religião, e a segunda, uma profunda mudança nos padrões de pensamento do homem ocidental. 
     O mito da Rosa-Cruz é um dos mais interessantes frutos do pensamento reformista que varreu as consciências em fins do século XVII e início do século XVII. Ele resume a interação entre a alquimia, a gnose e as tradições cavaleirescas, três grandes vertentes de pensamento herdadas da Idade Média, as quais, influenciadas pela abertura proporcionada pela Renascença e pela Reforma, deram nascimento a uma forma de pensar e viver completamente nova, a qual viria a modificar toda a vida da sociedade ocidental.
     Historicamente, sabe-se que a  Rosa-Cruz, como sociedade organizada, nunca existiu antes do século XIX. As chamadas Fraternidades da Rosa-Cruz (AMORC), que hoje são conhecidas por esse nome, nada tem a ver com o grupo de pensadores hermetistas que, entre 1614 e 1616, provocaram considerável comoção nos meios intelectuais da Europa, pelo lançamento de três famosos documentos de caráter misterioso e ocultista, chamados Fama Fraternitatis R.C., Confessio Fraternitatis Rosae Crucis e Núpcias Alquímicas de Christian Rozenkreutz.  Estes trabalhos, como demonstrados por Serge Huttin e Frances Yates, foram produzidos pelo alquimista Johan Valentin Andreas, um dos pioneiros do chamado grupo de pensadores rosacrucianos que viriam a provocar um grande impacto na cultura ocidental. Eram trabalhos que refletiam não só o conflito religioso desencadeado pela Reforma, como também as disputas dinásticas que ensanguentaram a Europa durante vários séculos.
 
A doutrina Rosa-Cruz
 
    De acordo com os Manifestos Rosa-Cruzes, “iria ocorrer uma transformação no mundo da política e do pensamento da humanidade” em razão dos segredos e da aplicação dos conhecimentos que os rosa-cruzes possuíam. “Uma nova época de liberdade espiritual começaria para a humanidade, na qual ela seria libertada dos grilhões que lhes impusera a Igreja Católica, durante séculos.” Com essa mudança, diziam os Manifestos, o homem voltaria a fazer parte da natureza, e com ela conviveria harmoniosamente, numa relação de participação e colaboração harmônica, e não como predador e dominador, como ocorria até então. Destarte, um “novo homem”, semelhante ao que Giordano Bruno e os filósofos hermetistas profetizavam, nasceria dessa relação. Seria um homem amante da beleza e da justiça, socialmente comprometido com as ideias de progresso científico e material e espiritualmente preparado para professar uma nova religião, isenta de dogmas, cimentada nas virtudes da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Professaria uma religião onde a única deusa seria a Justiça, tendo como base doutrinaria a beleza e a ciência, que eram as fontes da verdadeira gnose. Essa seria a doutrina, que alguns anos mais tarde, iria encantar a intelectualidade europeia e passaria a ser cultivada pela maioria deles com o nome de Iluminismo. 
     Os Manifestos Rosa-Cruzes, como é óbvio, não revelavam nenhuma novidade no fervilhante caldeirão cultural em que se transformara a Europa em fins do Século XVI e início do Século XVII. Eram ideias que já vinham sendo cultivadas nos meios intelectuais da França, dos Países Baixos e principalmente da Alemanha, onde havia uma população mais educada e meio cansada e meio cansada da ditadura espiritual que lhes impunha a Igreja Romana. Ela encantou especialmente os intelectuais, que só queriam uma justificativa filosófica para romper as amarras que a Igreja colocava aos seus espíritos.
     Os alquimistas, como Andreas e seu grupo, praticantes da chamada ciência hermética – um misto de ciência natural e doutrina gnóstica – eram os que mais sofriam com a perseguição da Igreja. Por isso, quando ocorreu a chamada Reforma Protestante, eles foram os primeiros a se aliar aos rebeldes seguidores de Lutero no seu repudio á ditadura do clero católico. Lutero, por coincidência, ou por afinidade com os rosa-cruzes, usava uma rosa como brasão de armas.
     Assim, o mito da Rosa-Cruz, que refletia esse estado de coisas, pode ser contado como mais um episódio da Reforma religiosa, pois o que ele refletia, na verdade, era uma crença que havia sido tratada com muita desconfiança pela Igreja até então e não poucas vezes reprimida com muita violência. Pode-se dizer que o rosacrucianismo foi a face esotérica do movimento luterano.
 
As consequências do pensamento rosa-cruz
 
     Destarte, os Manifestos Rosa-Cruzes acabaram se tornando uma inteligente peça de mídia, que valorizava a alquimia como prática científica e mistificava seus pretensos segredos e conquistas no campo da ciência e do desenvolvimento espiritual, segredos esses que seus praticantes pretendiam possuir e pretendiam usar para promover o desenvolvimento espiritual da humanidade. Ao mesmo tempo serviam á causa da Reforma Protestante.
     Essa proposta, como é óbvio, não podia agradar a Igreja de Roma, pois os rosa-cruzes, como é óbvio, estavam se colocando como alternativa de orientação espiritual para o povo, ameaçando assim, o monopólio de Roma. Tudo isso fazia parte do efervescente caldo cultural que fervilhava na Europa na época.  A Renascença havia permitido o desenvolvimento de um ideal estético que valorizava o homem a partir dos antigos modelos greco-romanos de beleza e competência pessoal. O culto ao humano, eclipsado durante a Idade Média pela valorização do ideal ascético, começou a ganhar os principais centros intelectuais da Europa. A ciência, até então confinada aos mosteiros e aos laboratórios dos alquimistas, começava a se renovar pelo uso da razão,  sobrepujando a fé. Multiplicaram-se as universidades e estas criavam centros de pesquisas, substituindo os antigos laboratórios dos alquimistas na investigação dos fenômenos da natureza. Nascia assim a ciência moderna.  Teorias racionais de explicação do universo contrastavam com as velhas ideias defendidas pela Igreja. O antigo alquimista, solitário pesquisador dos fenômenos da natureza, deixava a sua fama de mago e tornava-se cientista, publicando os resultados de suas pesquisas e compartilhando seus conhecimentos de uma forma mais aberta, sem o temor de ser levado á fogueira como herético.
      Em meio a tudo isso aconteceu uma revalorização do pensamento hermético e das teses gnósticas, que haviam sido banidas dos meios acadêmicos pelo expurgo feito pela Igreja no Concílio de Nicéia, quando a grande maioria dos escritos gnósticos e os trabalhos dos filósofos hermetistas foram censurados e colocados na clandestinidade. Filósofos como Giordano Bruno, Thomas Mórus, Marcilio Ficcino, Pico de La Mirándola, Roger Bacon e outros ressuscitaram as utopias políticas cultivadas pelos pensadores neoplatônicos e as teses que fundamentavam as antigas religiões solares, que encantaram os intelectuais nos primeiros séculos da Era Cristã. As explicações do universo, admitidas pela Igreja, que eram centradas na filosofia de Aristóteles e no hélio-centrismo de Ptolomeu foram substituída por uma nova ciência astronômica desenolvida por cientistas como Galileu Galilei e Nicolau Copérnico.
       Os Manifestos Rosa-Cruzes excitaram a imaginação popular e não foram poucos os intelectuais que se sentiram atraídos pela “Fraternidade da Rosa-Cruz”. Mas como vimos, os rosacrucianos, não estavam pregando nada de novo. Eles nada mais faziam do que divulgar teses e crenças herméticas desenvolvidas por alquimistas e filósofos gnósticos e neoplatônicos. Seus segredos eram aqueles que os alquimistas diziam ter descoberto em seus “magistérios”. Grupos desses pensadores “rosacrucianos” já faziam parte ativa das Lojas maçônicas alemãs, francesas e inglesas muito antes da união das Lojas londrinas e tinham introduzido nos rituais dessas Lojas símbolos, alegorias, evocações e ensinamentos extraídos da tradição hermética e gnóstica. Muitos deles estavam entre os chamados “maçons aceitos”, ou seja, pessoas que pelo seu perfil intelectual, importância social ou poder político, as Lojas maçônicas da época tinham interesse em cooptar. O termo “rosacruciano” tornou-se sinônimo de livre-pensador. Todo intelectual que não se conformava com a “saia justa” que as autoridades religiosas queriam impor ao pensamento se dizia, ou se julgava um “rosacruciano”. Voltaire, Isaac Newton, Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, entre outros, eram tidos como “rosacrucianos”. Assim, o pensamento Rosa-Cruz se fundiria com a tradição maçônica dos pedreiros livres para gerar o que hoje conhecemos como Maçonaria Especulativa.
 
A Maçonaria e a Rosa-Cruz
 
       Durante todo o século XVII as Lojas maçônicas da Europa conviveriam com essa verdadeira Babel intelectual em que se tornara a Ordem maçônica. Maçons alquimistas, maçons gnósticos, maçons cavaleiros, ca da qual, conforme escreveu H.P. Marcy, “interpretando à sua vontade as Velhas Constituições (as Old Charges), criando uma profusão de maneiras de fazer uma iniciação, de conduzir uma reunião, de interpretar os símbolos e os ensinamentos maçônicos.[1]
     Em tese, podemos dizer que os Manifestos Rosa-Cruzes foram os correspondentes herméticos da doutrina professada na Maçonaria especulativa e anteciparam em mais de um século os estatutos da Ordem em sua face espiritualista, porquanto agasalharam em suas propostas a idéia de Irmandade, que a Ordem Maçônica, secularizada e transformada em uma organização mundial, iria perseguir em seus objetivos.
     Por isso é que em que em todo o catecismo maçônico, desde o grau de aprendiz até os últimos graus da sua cadeia iniciática, iremos encontrar temáticas inspiradas na tradição alquímica e na doutrina Rosa-Cruz. Elas estão presentes na alegoria da Palavra Perdida, que é claramente um tema hermético, da mesma forma que no mito da Fênix, o mítico pássaro que renasce das próprias cinzas, que na verdade, é uma alegoria que se refere ao processo de obtenção da pedra filosofal, o objetivo último de todo trabalho alquímico. Está presente também na expressiva simbologia do ritual de iniciação do neófito maçom, na passagem do grau de aprendiz para companheiro quando ele se transforma de mero trabalhador da pedra bruta em cinzelador da pedra cúbica (simbologia do adepto alquimista na procura da pedra filosofal) e finalmente na passagem do companheiro para mestre, quando, afinal, se dá a regeneração da matéria corrompida que se processa pelo sacrifício simbólico do mestre do Templo. Pois na tradição alquímica o mestre só cedia seu lugar ao seu discípulo com a sua morte. 
      É verdade que nos ritos maçônicos as referências ao processo alquímico foram transformadas em alegorias de cunho simbólico para dar um caráter de esoterismo e transcendência á liturgia ritualística que ali se representa. De outra forma, cristianizaram-se diversas alegorias de inspiração hermética para dar aos iniciados uma aparência de doutrina alinhada com o pensamento cristão. Dessa forma, temas como o da Palavra Perdida, que na origem se soletrava IHVH, (o Tetragramaton dos gregos), passou a ser soletrada INRI, iniciais colocadas na cruz de Cristo, da mesma forma que a fórmula da transmutação alquímica ganhou uma representação simbólica na alegoria da morte do Mestre Hiram e a pedra filosofal, momento mágico de maior transcendência da obra alquímica, passou a ser representada pela Rosa Mística, símbolo da transmutação espiritual que se processa na alma do Adepto que é submetido á iniciação maçônica.
      Dessa forma, não seria absurdo dizer que a doutrina professada na Maçonaria foi, em sua essência, inspirada no pensamento Rosa-Cruz. E seria impossível aprofundarmos o estudo de uma sem um sólido conhecimento da outra.

 
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Notas
1. Palou, Jean- Maçonaria Simbólica e Iniciatica, Ed. Pensamento, 1986