A MAÇONARIA E O CONCEITO DE JUSTIÇA  
                      
Justiça e Direito.

Um dos temas que mais interessa aos maçons é prática de Justiça. E nesse sentido é útil estabelecer a diferença entre Justiça e Direito, embora isso nem sempre seja possível. Um dos melhores dissertadores sobre esse tema, para nosso orgulho, foi o grande Miguel Reale, emérito jurista e professor de Direito na Universidade de São Paulo, autor de uma das mais vigorosas  obras já escritas a esse respeito. Sua “Teoria Tridimensional do Direito” ainda hoje está  entre as mais respeitadas teses a respeito da chamada ontologia do Direito, porque integra em um todo inseparável,  a tríplice fonte de onde elas emanam.[1]
Assim, fica mais fácil entender que nem sempre a existência de uma regra legal, e seu cumprimento, significa que a Justiça está sendo feita. Quer dizer, o Direito Positivo é uma coisa, a realização da Justiça, que ele deve buscar, pode ser outra, completamente diferente. Não há, obrigatoriamente, uma perfeita identidade entre os dois conceitos. Via de regra, uma ordem jurídica posta por uma ditadura é um bom exemplo dessa incompatibilidade entre Direito e Justiça. Nem sempre ela será posta para a realização da felicidade do povo a quem deveria servir, mas sim para sustentar as pretensões do grupo que detém o poder. Nessas situações é que se observa o descompasso que pode haver entre Direito e Justiça.
Não é pois, sem razão, que a Maçonaria tem esse tema como elemento fundamental do seu catecismo. Iremos encontrar, no ensinamento de quase todos os graus, desde a Loja Simbólica até os mais altos graus filosóficos, várias colocações sobre esse assunto. E sempre com o objetivo de chamar a atenção dos Irmãos para os perigos e os males que o autoritarismo político normalmente traz para a organização do Estado e a felicidade geral do povo a quem ele deveria servir. Por isso, a democracia é a única forma de organização política que a Maçonaria endossa. Essa disposição está bem explícita em vários dos nossos rituais, e a defesa desse postulado não viola a proibição constante de nossos estatutos, que veda a discussão política e a propaganda partidária em nossas Lojas.
 
O conceito maçônico de Justiça
                                 
      Dada sua estrutura simbólica-iniciática, a Maçonaria trata o tema da Justiça mais no seu conteúdo  moral do que sociológico, propriamente dito. Nela, releva mais a questão moral e ética contida no termo do que a sua repercussão no mundo real, como regra impositiva. Por isso é que o primeiro conceito de Justiça, que encontramos na filosofia maçônica está vinculado ao simbólico nome da Maat, a deusa egípcia da Justiça, cuja missão precípua era realizar uma ligação entre a humanidade e os deuses, levando para estes as necessidades e as aspirações humanas e trazendo para a terra a lei, que era resultante da vontade expressa dos deuses. Por isso, na iconografia egípcia ela sempre aparece pesando os corações dos defuntos, antes de submetê-los ao  julgamento no Tribunal de Osíris. Isso mostra que no antigo Egito, a Justiça estava muito ligada ao conceito de moral e virtude, pois a a crença egípcia era que no coração estava a sede das qualidades que fazia o homem justo e perfeito.

Destarte, o conceito de lei, de organização do Estado, era, no antigo Egito, uma questão mais religiosa do que política, e o faraó, que encarnava na terra o poder representativo dos deuses, era considerado o seu executor. Sendo a Justiça emanada diretamente dos deuses, o Direito, que era a sua ferramenta de execução, era aquele ditado pela casa real. Nascia assim a teoria do direito divino dos reis, cujas repercussões atravessaram séculos e só passaram a ser contestadas na época moderna, quando as monarquias começaram a ser substituídas por formas de governo alicerçadas na representação popular.
Assim, já de princípio nota-se que o conceito de Justiça, entre os maçons, está mais próximo dos antigos modelos egípcios e gregos do que de nos conceitos modernos que destacam mais a positividade da norma do que a  sua axiomática. Aqui se releva mais o valor moral e ético que sustentam o conceito do que os elementos do fato em si e a norma que ele descreve. Isso nos leva a concluir que o se valoriza na Maçonaria é a virtude contida na lei e não o sentido impositivo que ela reflete, ou valor intrínseco do bem que ela se propõe tutelar.
 
      De outra forma, podemos também invocar outra influência que nos parece relevante nesse tema. A nós, parece que o conceito de Justiça agasalhado pelo catecismo maçônico comporta maior afinidade com a ética e a moral defendida pelos antigos filósofos gregos do que com as roupagens cristãs que lhe foram dadas pelos filósofos escolásticos que, a nosso ver, chumbaram o conceito de Justiça muito mais á finalidade prática que ela encerra do que a virtude que ela busca preservar. Pois estes, na ânsia de justificar o “pater potestas” atribuído ao Papa, reforçaram e estenderam esse privilégio aos reis, dando força e respaldo á teoria do direito divino. Todo direito medieval seria influenciado por essa teoria, especialmente o Direito Penal. Este, por consequência, acabou sendo vinculado de preferência á proteção do "status quo" vigente, ao invés de servir de instrumento de segurança das relações sociais e fórmula de realização da felicidade da sociedade. Diferente do modelo egípcio onde a teoria do direito divino valorava bem mais a noção de Justiça que a noção de Direito, propriamente dito.

Gregos e cristãos: escatologia punitiva

     Os antigos gregos, nesse mister, eram mais criativos do que os filósofos da Igreja Romana. Entre os gregos havia a noção de que cada crime, ou vício, devia ter uma pena correspondente ao seu tipo e gravidade. Nesse sentido era como se eles tivessem dado uma justificativa ética e moral para a Lei de Talião, no sentido de a pena devia guardar perfeita identidade entre o valor e a identidade do ato em si. Assim, Sísifo, por exemplo, notório ladrão e assassino, foi posto no Tártaro, uma espécie de inferno da mitologia grega, e condenado a carregar eternamente uma enorme pedra até o cume de uma alta montanha, só para vê-la ser rolada novamente para baixo, e ele ser obrigado a buscá-la.   A moral contida nessa estranha penalidade era a de que todo aquele que se apropria injustamente de bem alheio, ou o destrói, como é o caso do assassino, que acaba com o bem mais precioso que uma pessoa tem, deve passar a eternidade trabalhando para repor ou reconstruir o que ele tirou, sem jamais consegui-lo. Assim ele saberá qual foi exatamente o valor do bem que ele tirou. Outro criminoso, o rei Tântalo, sujeito cruel, beberrão e devasso, foi levado ao Tártaro por ter matado o próprio filho e servido sua carne em um banquete para os deuses. Sua pena foi ficar eternamente acorrentado dentro de uma piscina de águas cristalinas, colocada em baixo de uma parreira carregada de cachos de suculentas uvas. Toda vez que tinha sede e tentava beber água o nível da piscina descia e se colocava fora do seu alcance; quando tinha fome e tentava pegar algumas uvas, os cachos subiam e ele nunca conseguia alcançá-los, Assim, sua pena foi ter que passar fome e sede eternamente.
     No sistema moral-penal cristão a única cabeça que se aproximou da imaginação grega em termos de escatologia punitiva foi Dante Alighieri. Em sua Divina Comédia ele coloca seus desafetos e as figuras históricas que não lhe eram simpáticas, no circulo inferior do inferno e lhes comina sofrimentos indizíveis como pagamento de suas penas. O pensamento de Dante, no entanto, foi influenciado pela visão escatológica que a Igreja Católica tinha do conceito de Justiça e ele não se afastou muito do conteúdo moral que ela pretendia veicular. Não cogitou ele de imaginar situações em que o castigo dado ao ofensor se identificasse com o crime cometido e fosse paga com algo que se assemelhasse  com a perda do valor que ele ofendeu, como no caso do rei Tântalo, cujo crime estava ligado ao vício da gula e por isso foi condenado á fome e sede eternas. No fundo, Dante reflete exatamente o pensamento escolástico que contrapõe vícios e virtudes como caminhos opostos que uma pessoa pode escolher para seguir: a primeira levando ao castigo, a segunda ao prêmio. E nesse sentido, o sistema penal da época iria refletir essa mesma orientação, valorando com mais peso certos comportamentos do que outros sem cogitar do valor moral, ético e sociológico que eles pudessem ter.[2]
Cabe, por fim, dizer que o conceito de Justiça agasalhado pela Maçonaria deve muito ao pensamento do filósofo iluminista Césare Beccaria.
 
Dos delitos e das penas
 
Césare Bonesana, marquês de Beccaria (1738–1794) foi jurista, filósofo e economista. Seus trabalhos a respeito do Direito Penal tornaram-se clássicos que até hoje influenciam esse ramo do Direito. Beccaria foi a primeira voz a levantar-se contra a tradição jurídica e a legislação penal de seu tempo, denunciando os julgamentos sumários, as torturas empregadas como meio de se obter a prova do crime, a prática do confisco dos bens dos condenados, as provas obtidas por meio ilegais, o abuso do poder de polícia, que eram a marca do direito penal medieval, herdado do Código de Justiniano e inspirado na filosofia escolástica. Uma de seus pressupostos é o de que a igualdade perante a lei, dos criminosos que cometem o mesmo delito, devia prevalecer na tipificação e dosagem da penalidade. Quer dizer, não se devia punir a condição do autor, como se fazia até então, mas o ato em si.
Grande nome do iluminismo francês, ele foi muito respeitado pela intelectualidade da época, especialmente Voltaire, Diderot e Hume, entre outros. A obra fundamental de Beccaria é o famoso “Dos Delitos e das Penas”, um dos clássicos do mundo do direito. É muito justa a homenagem que lhe faz a Maçonaria, colocando suas teses como parte do ensinamento de um dos graus mais importantes do seu catecismo.
Beccaria observa, com muita razão, que geralmente as convenções sociais, que são quase sempre a fonte das leis, são produtos das paixões de uma minoria, ou fruto do acaso e do  momento em que a temperatura espiritual dos povos explode, toldando a razão, eliminando a piedade e mascarando a Justiça. Nesse sentido ele faz uma clara distinção entre Justiça e Direito, sustentando a tese de que o último só se justifica como sustentáculo da primeira. Direito que não reflete a Justiça não é Direito, mas apenas impostura e tirania.
Em seu sistema ele denuncia a prática jurídica de sua época, na qual os delitos são valorados segundo a sensibilidade daquele que se sentiu ofendido e teve força para fazer valer sua opinião. E a partir dessa valoração casuística e parcial as penas eram definidas, punindo muito mais a condição social do indivíduo do que a ofensa que o ato carrega em si.
Para ele, dificilmente as leis penais acontecem como produto da observação prudente da natureza humana. E jamais são orientadas para a produção do bem estar da sociedade em geral.  Por isso os homens sábios e aqueles que estão comprometidos com o bem estar da sociedade devem se adiantar e liderar movimentos no sentido de promover mudanças no sistema juridico, e não ficar esperando por revoluções que as provoquem.  “Venturosas as nações (se algumas existem), escreve ele, que não aguardaram que revoluções lentas e vicissitudes incertas fizessem do exceder-se do mal uma norma para o bem. E que, por meio de leis sábias, apressaram a passagem de um a outro. Como é digno de todo reconhecimento dos homens o filósofo que, no imo de seu retiro, desconhecido e desprezado, corajosamente lançou na sociedade as primeiras sementes, por tanto tempo infrutíferas, das verdades úteis.”[3]
 
      A bem da verdade, embora Beccaria tenha trazido o humanismo renascentista para a discussão penal, suas propostas não eram novidade no ambiente profundamente reformista em que ele viveu. Vários outros filósofos já haviam defendido uma humanização do sistema penal.[4]
E não é estranho que os maçons as tenham absorvido quase que por completo em seus catecismos. Afinal, a Maçonaria também um produto cultural do efervescente mundo intelectual que surgiu após a Reforma Protestante. Filha do esoterismo plantado pelo movimento Rosacruz, com o racionalismo humanista dos iluministas, cuja crença na virtude da razão humana era mais forte do que as promessas feitas por qualquer religião, a Maçonaria abraçou completamente o pensamento de Beccaria, em sua proposta de humanização do sistema penal. Era, como se pode perceber, uma filosofia que se aproximava bastante do conceito grego de Justiça, de que a pena deve ser valorada de acordo com a moral implícita no crime praticado e não de acordo com o valor do bem tutelado pela norma, ou a condição social do autor do delito. Nesse sentido, a moral cristã, como inspiração informativa para o Direito Penal, devia ser afastada e substituída por um sistema cuja interpretação e aplicação das penas privilegiasse a ideia de Justiça, ao invés da letra pura e fria da lei posta.
Porque Beccaria entendia que o sistema penal vigente em sua época, e contra o qual ele lutou, era resultado mais de uma imposição de quem detinha o poder de legislar do que um bem oriundo do interesse social.
A Maçonaria, ao fazer essa homenagem ao grande jurista do Iluminismo presta um grande serviço á causa dos direitos humanos e ao inalienável lema que justifica a prática maçônica: Liberdade antes de tudo, Igualdade como forma de alcançá-la e preservá-la e Fraternidade como meio de compartilhar a felicidade que todos merecem ter em um mundo regido pela verdadeira Justiça.
 
 
[1]Ou seja, o fato, o valor e a norma. O que quer dizer que nenhuma norma legal é justa quando não corresponde totalmente ao fato a que ela se refere nem integra um valor moral, ético e sociológico que mereça ser defendido através de uma regra de Direito. Cf.Miguel Reale- Filosofia do Direito, São P1960.
[2] Um exemplo pode ser dado pelas leis de defesa da honra cuja valoração era maior do que a vida. A vida pouco valia em presença da honra, especialmente entre a classe nobre. Também a pena por roubo, que não distinguia o valor do objeto roubado, sendo a mesma para o furto de um pão, quanto para um assalto á mão armada em que o ladrão levasse tudo que a vítima tem. No caso, era punida mais a condição do autor do furto do que o ato em si.
[3] Beccaria- Dos Delitos e das Penas, pg. 12
[4] Erasmo de Roterdã e Giordano Bruno, entre outros.