A Borboleta Azul e a Cultura do Entulho

Nenhuma nuvem no céu de outono e a gélida brisa do mar acaricia o delicado rosto de Clarice que abre a janela do quarto junto com seu irradiante sorriso matinal. Brincando no vai e vem de suas asas, uma borboleta azul paira sobre o ar. Clarice aprecia esta conexão singular com a borboleta estendendo o braço para ela pousar. Instantaneamente, ela se acomoda com delicadeza na sua mão, fica um pouquinho e sai voando em direção as árvores mais próximas. Acompanhando com o olhar a magnífica borboleta da sua janela que fica no alto do segundo andar de sua residência, a sensível e bela moça admira o bairro onde mora há quatro anos. Percebe que as moradias se expandiram devido ao “aluguel de casas” na temporada de veraneio e os terrenos ficaram pequenos. A arquitetura popular se verticalizou para aproveitar o espaço físico das áreas residenciais e as reformas e construções são ininterruptas. É comum avistar as casas “geminadas” em que a vizinhança aproveita a parede ao lado para sustentar sua moradia. Na rua, as crianças andam de bicicleta e jogam bola enquanto uma senhora se desloca vagarosamente pela calçada. Clarice observa a senhora que caminha com dificuldade para a parada do micro-ônibus e fica atenta e indignada quando avista um amontoado de “entulhos” – tijolos, madeiras, telhas, canos, sacolas e restos das construções e dos ajardinamentos, eletrodomésticos e móveis inutilizados – interrompendo o trajeto da admirável anciã, avó de uma vizinha. Desviando dos galhos, latas e entulhos, a senhora desce a calçada com o auxílio de sua bengala e caminha no cantinho da rua de paralelepípedo que estava empoçada pela saturação de algum “sumidouro” ou fossa, exalando um odor de esgoto insuportável. “Quanto descaso com os idosos”, pensa Clarice. Imagina como estará sua cidade daqui há algumas décadas e como viverá sua velhice com seus netos. Conseguirá se deslocar de um lado para o outro? Em meio a cena que presenciou, Clarice lembrou de uma notícia que leu no jornal demonstrando a iniciativa de alguns municípios que cobravam multas exorbitantes para as pessoas que acumulassem lixo na frente de suas residências e comércios. Constatou que em seu bairro, só se vê entulhos e mais entulhos! “Tá trabalhando para prefeitura?” era o que escutava enquanto limpava sua calçada. Os moradores não tem nenhum senso de convivência comunitária e jogam tudo o que não presta nas calçadas, terrenos baldios e nas ruas. Porque as pessoas não acumulam o lixo nas suas casas e pátios? Para onde é descartada toda essa “imundice”? Resmunga num tom irônico: “Dizem que a sujeira é coisa dos bairros das periferias, mas a cultura do entulho aparece nos bairros mais elitizados, em cada esquina está empilhado o refugo da construção civil”. Refletindo sobre a sociedade de consumo - que consome as mercadorias, o meio ambiente e as pessoas – imagina “o entulho mental” que o neoliberalismo, as grandes mídias e a exploração do trabalho nos impõe, já que o meio social em que vivemos está em consonância com nossa visão de mundo. Diante das suas indagações, essa singela e adorável mulher lembra da borboleta azul que veio lhe alegrar a manhã e como de costume, abriu seu encantador sorriso. Fechando a janela do seu quarto, Clarice verifica no seu relógio que está na hora de se arrumar, tomar café da manhã, levar sua filha na escola e ir trabalhar, desviando dos entulhos e alertando a comunidade para a responsabilidade de todos em manter seu bairro limpo e agradável, tornando sua cidade um bom lugar para se viver e conviver.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 08/04/2015
Código do texto: T5199672
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