A Prática do “Eu Estive Aqui”: O Deoclécio da Furna e as Pichações Contemporâneas

Entre as andanças e pesquisas no Morro das Furnas, no popular Parque da Guarita situado na zona sul da cidade de Torres/RS, sempre fiquei intrigado pelos recantos desconhecidos e histórias e estórias da cultura pesqueira local, assim como o turismo foi modificando o ambiente e transformando a vivência tradicional das comunidades. Na adolescência, em incursões recreativas pelas reentrâncias da Torre do Meio, começo a explorar as Furnas (com o passar do tempo, fui batizado de “Homem das Furnas” pelas pessoas). Entre a prática do surf, passeios com a família e amigos, as pescarias e a coleta de mariscos percebo muitas inscrições, grafites e pichações em locais específicos. Mensagens de casais apaixonados, desenhos variados e principalmente, nomes próprios seguidos de datas. Os locais selecionados pelos “artistas” e “arteiros” são lugares acessíveis e de boa visibilidade próximos as trilhas e escadarias, outros são escondidos e de difícil acesso como no interior da Furninha. As bordas das falésias nas proximidades da praia são os lugares mais atingidos como no sopé da Torre Sul em sua extensão, na Pedra da Guarita (na base de arenito Botucatu de formação de cerca de 150 milhões de anos), na subida do Morro das Furnas no local conhecido como “Ponte”, que pertence a pedreira do Porto Marítimo de Torres, construção datada de 1890. No bloco remanescente da área de extração de matéria- prima para o perfilamento do quebra-mar do porto encontra-se um misto de rabiscos que revelam as técnicas utilizadas no registro; desde tinta spray à raspagem superficial da rocha. Na praia da Guarita foi localizada uma inscrição em espanhol em baixo relevo de um casal, provavelmente uruguaio, argentino ou chileno, datado de 1970. Nas escadarias é comum perceber as intervenções, as pessoas olham as escritas anteriores e motivam-se a repetir o ato quase que instintivamente com uma pedra, tinta ou outra ferramenta em mãos.

Na escadaria da Furninha, constata-se diversos nomes e datas inscritos que iniciam nas décadas de 1920, 1930, 1940 até rabiscos mais atuais. As escadarias de acesso aos pesqueiros do Diamante, Furninha e Furna Grande foram construídos em 1957, exceto a escadaria do Saltinho em 1992. No local de acesso ao Marégrafo de Torres (atualmente sem escadaria entre o Diamante e a Furninha), há o registro “H. Rieger 10.3.9 1927”. No acesso à Furninha destacam-se “Evory 1923” e “Mario D. Pilla 9. 23 1929” entre outras de décadas posteriores. No interior da Furninha, nas proximidades do sítio histórico do Marégrafo de Torres (considerado o primeiro Datum Altimétrico do Brasil construído em 1919), existe a inscrição mais antiga do Morro das Furnas, “Deoclécio Godinho Porto 1. 4 1917” e sucessivamente, “Walter Robenhond 16. 2 1918). Foram realizados inúmeros levantamentos á procura de novos registros na Furna do Diamante e na Furna Tocão e nada foi encontrado. No percorrimento dos pesqueiros adjacentes, na Furna Grande, no “Feio” e Saltinho também não houve registros significativos de caráter histórico ou arqueológico. Na porção norte, no lado da Praia da Cal, no pesqueiro Portão e nas Furnas Secas já foram localizadas muitas pichações com tintas ou spray e inscrições superficiais. Nas Furnas Secas, logo abaixo do Portão é um concheiro natural oriundo da oscilação marítima e há nomes legíveis e ilegíveis feitos com tinta associado ao acúmulo de lixos. Nas rochas próximo ao Portão existem pichações contemporâneas numa pequena furna e nos locais onde as pessoas costumam descansar e apreciar o mar.

Durante muito tempo se questionou porque não há evidências de arte rupestre nas encostas do Morro do Farol, na Torre do Meio, Guarita e Torre Sul. O único sítio rupestre registrado até o momento é o Sítio Morro das Pedras na zona rural do município. O extravasar das emoções através da escrita e desenhos em paredões remonta as populações primitivas. Na busca pelas evidências pré- históricas nas falésias, as inscrições históricas sobressaem-se pelo registro temporal. Na caligrafia do nomes de “Deoclécio” e “Walter” no interior da Furninha, podemos fazer uma análise das técnicas empregadas e localização. No caso específico, “Deoclécio Godinho Porto” utiliza a técnica de picoteamento com uma letra rudimentar sem preocupação estética. Pelo sobrenome este sujeito tem suas origens familiares enraizada nas comunidades litorâneas, provavelmente açorianos. Já “Walter Robenhond” colocou seu nome no alto e teve que utilizar um andaime ou escada e inscreveu sua assinatura com forte apelo estético e refinada letra cursiva. Em pesquisas recentes, surge informações em que o sujeito em questão tinha relação empregatícia com a Prefeitura, possivelmente um engenheiro contratado na época, e sua datação está relacionada à implantação do Marégrafo. Pelo sobrenome “Walter” tem origem alemã e era uma pessoa ilustrada, com certo grau de instrução. As datas registradas na escadaria da Furninha nos remetem a introdução do turismo nas praias torrenses e o usufruto desses territórios, que eram apropriados pela comunidade local como pesqueiros, e incorpora novos significados como pontos turísticos, lugares de visitação sazonal, como revelam as fotos das famílias de veranistas das primeiras décadas do século XX. Os registros posteriores nos auxiliam a compreender a história do turismo até seu auge com o desenvolvimento do turismo estrangeiro na década de 1970 e o “xeque- mate” do turismo de massas. São registros humanos que atravessam o tempo deixando resquícios de contexto históricos importantes para a compreensão das transformações sociais e culturais, além de uma profunda pessoalidade, singularidade e simbologia. Os significados simbólicos da arte rupestre do Sítio Arqueológico Morro das Pedras aos pichadores contemporâneos, o que está subentendido, imbricado entre a arte e o vandalismo? De alguma forma todos tem a intenção de serem “imortalizados” ou dar visibilidade para uma causa. Denominei estes vestígios como a “Prática do Eu Estive Aqui” numa perspectiva histórica, antropológica, sociológica e filosófica de pesquisa que valorize os sujeitos por trás de suas assinaturas e caligrafias e revelem a importância da preservação do patrimônio histórico e natural. As falésias basálticas, testemunhos da divisão continental e que deram nome as Torres, não merecem ser agredidas por pichações ou inscrições contemporâneas, pois perturba a integridade paisagística dos monumentos naturais. Não podemos confundir o valor histórico do quase centenário “Deoclécio da Furna” com a depredação do patrimônio cultural causada pelo “pixo” desorientado.

Publicado no Jornal A Folha.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 23/04/2015
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