MORADA SOFRIDA

Morar num prédio do tipo caixão parecido com aquelas catacumbas abandonadas durante anos ou meses antes da reforma de finados, é provar de experiências insípidas, inodoras e incolores. Também morei num prédio descascado, com a cara de escombros após um ataque de artilharia aérea. Sobrava uma sensação de prisioneiros conduzidos a um campo de concentração durante a segunda guerra mundial parecida com as viagens feitas por torcedores de time de futebol, nos metrôs de superfície, após um clássico no Maracanã. Ainda assim, a vida acontecia sofregamente durante às 24 horas do dia. Ali quase de tudo se passava sem muita novidade, somente a esperança por uma vida melhor alimentava o cheiro de poeira gerado por acontecimentos fortuitos e fora dos padrões ao convívio. Exemplos: taxa de condomínio, reuniões, síndico, eram sinônimos de palavrões e blasfêmias. Palavras consideradas um verdadeiro atentado ao estresse habitual. Nada de despesas além do estritamente necessário. Quanto a apresentação do prédio, pintura, janelas quebradas, o mato tomando conta de todos terreno livre, enfim por maior que fosse a assombração nada disso importava aos moradores. Assombroso ou não era ali onde se vivia uma parte considerável do tempo. Os serviços de manutenção, nem se falava. Só para ilustrar a questão resolvi socializar uma informação obtida de um rapaz tímido que morava num deles. Contou-me que num determinado dia comprara numa feira de final de semana, um quadro muito bonito contendo uma santa religiosa. Pois bem, ao levantar-se da cama em certa noite, observou que a santa chorava. Interpretou que talvez de tristeza por presenciar a vida naquele lugar, ou pelo fato de terem-na afixado à parede úmida, descascada e ornamentada de raios de sangue causados pelas chineladas sofridas pelos pernilongos. Segundo ele, o negócio era pra lá de espantoso em termos de apresentação visual. O grande Joãozinho trinta seria mais uma vez condecorado com um tema carnavalesco antes de seu falecimento, caso pudesse retratar a vida e o cenário que ali se desenrolara. O impressionante é que tudo isso acontece noutros lugares onde a pobreza se instale, e aos olhos vendados pelo egoísmo daqueles que não querem ver e sentir o sacrifício de uma parcela substancial da população.