Livre como uma Criança

Sempre que penso na fase da infância recordo-me das aventuras do Pequeno Príncipe escritas pelo piloto de avião A. Saint- Exupéry e sua crítica ao mundo problemático dos adultos evocando as virtudes humanas da bondade e do altruísmo, o valor das amizades, a pureza, ingenuidade e a curiosidade. Lembranças dos momentos em família, das brincadeiras com os amigos e da rotina escolar, o meio social que a criança desenvolve suas habilidades e forma seu caráter e personalidade. Sabemos que existem tipos diferenciados de infância: as famílias mais pobres não tem condições de oferecer oportunidades para as crianças como as famílias com maior poder aquisitivo. Desde cedo trocam os brinquedos pelo trabalho para ajudar no sustento do lar, na criação dos irmãos e outras responsabilidades que sequestram suas aspirações infantis. As crianças ficam expostas a todo tipo de abuso e muitas vezes ocasionam traumas que levam pra toda a vida. No último dia 12 de outubro oficialmente é comemorado o dia das crianças, da padroeira católica do Brasil a santa preta N.S. Aparecida e o dia de incentivo à leitura. A mídia investe em propagandas para estimular os pequenos consumidores, os fiéis devotam suas preces e graças aos ritos religiosos e os amantes da leitura sobrevivem “à mingua” num país onde o mercado editorial explora seus leitores e pouco se aplica no amor aos livros.

Fico refletindo se as crianças tem “liberdade” para escolher seus gostos e afinidades ou se tudo é induzido de maneira subliminar ou explicíta e lembro do existencialismo de Jean Paul Sartre que afirma que nascemos livres e nos “escravizamos ou aprisionamos” a medida que fazemos nossas escolhas. As propagandas são imorais quando atingem as crianças com a sedução dos coloridos dos brinquedos, das roupas e dos alimentos carregados de açúcares, sódio, transgênicos e gorduras saturadas. Parece que é um investimento no futuro da indústria farmacêutica em que as crianças de hoje tornam-se adultos doentes no futuro. Percebemos a precocidade nas crianças em relação a sexualidade e na sua própria percepção da infância como algo vazio e transitório e o que almejam é ser adolescentes, adultos e independentes. As músicas perniciosas que corrompem suas visões de mundo propagadas por artistas infantis que banalizam as aspirações e sonhos dos pequeninos e pequeninas. A criança vê o mundo doce recheados de sonhos e imaginação, aprendem brincando e são verdadeiras em suas opiniões. Entretanto são extremamente influenciáveis e a orientação dos pais e educadores torna-se a tábua de salvação no complexo e revoltoso oceano da modernidade. Historicamente, o conceito de “infância” foi desenvolvido recentemente. Não havia distinção do universo infantil e adulto, as crianças eram adultos em miniaturas, vestiam-se como tal e pouco brincavam, conviviam pautados por responsabilidades fundamentais na manutenção das famílias. Na Revolução industrial eram exploradas em carga horária de 14 a 16 horas nas fábricas juntamente com suas mães, inclusive muitas mulheres davam à luz durante o trabalho. Desde 1990 temos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que procurou assegurar os direitos e deveres negligenciados ao longo do tempo. Mesmo criticado é uma importante ferramenta para garantir dignidade as crianças e adolescentes. O desafio está em avançar em aspectos fundamentais para sua efetiva aplicação na sociedade.

Atualmente, nossa concepção de infância tornou-se na “infantolatria” em que a idolatria a eterna infância e o deslocamento ao mundo próprio das crianças deixaram seus pais à mercê de suas vontades que em sua maioria são desejos implantados pela sociedade de consumo transformando os cidadãos em consumidores. Nossa sociedade nega o envelhecimento e quer criar um mundo artificial onde somos impelidos a beber eternamente na fonte da juventude. Quanto mais cedo absorver essa ideologia consumista mais lucratividade para o mercado neoliberal. As crianças tem tudo e não tem nada ao mesmo tempo. São cheias de brinquedos e pouca presença dos pais ou nascem em famílias desestruturadas e divididas onde suas referências se diluem ou se deslocam para outros interesses que não o de viver intensamente sua infância. Dificilmente, os pequeninos brincam com brinquedos que eles mesmos construíram ou brinquedos antigos da época dos seus pais e avós. Os brinquedos estragam e quebram e não tem conserto, surge a frustração ou compra-se um novo. Que dilema! Aos interessados indico a obra do historiador francês Philippe Ariès intitulada a “História Social da Criança e da Família” e os documentários disponíveis no Youtube: A Invenção da Infância e Criança a Alma do Negócio.

No meu tempo fazíamos muitos brinquedos e as brincadeiras eram nas ruas sujando-se de barro, sempre com o rosto encardido pulando nas poças d’água e subindo nas árvores. Me sentia livre... Aprecio a citação de Nelson Mandela quando afirma que “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”. Quando sinto o peso da discriminação nos emaranhados discursos de ódio, lembro que apreendemos nossos valores na primeira infância e podemos acreditar na utopia de um mundo melhor. Neste sentido, defendo incansavelmente a liberdade de expressão como um direito constitucional amparado por inúmeros tratados internacionais. Gosto de manter o espírito jovial e manter minha criança interior sonhando, viajando e acreditando no impossível. Minha liberdade como ser humano, educador, pesquisador e escritor, às vezes provoca desconforto nas pessoas que me cercam e não entendem que invento personagens que vivem nos contos ou divulgo resultados de pesquisas com base na historiografia. Como sou livre para criar e inventar meus apontamentos, os leitores tem a liberdade de argumentar, criticar ou ignorar. Ninguém é obrigado a ler o que escrevo e podem ter certeza que não abro mão da minha liberdade de expressão e opinião. Não se esqueçam que sou livre como uma criança correndo atrás de uma bola, admirando e re-admirando o mundo movido pela curiosidade e gargalhando alto com a cara de quem fez peraltice. Não deixem roubar a infância de cada um de nós!

Publicado no Jornal A Folha e Jornal Litoral Norte RS.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 15/10/2015
Código do texto: T5415734
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