A era dos melhoradores

Onde se explica, desde o início, como ocorrerão as inversões nas fiações do joystick que nos levarão para o outro lado dos controles e nos transformarão em marionetes.

Replicadores se replicam, fazem réplicas de si mesmos.

Vivemos a era dos replicadores, na qual criaturas capazes de se replicar multiplicam-se e se apresentam por todos os lados, ao redor. Não se trata de acaso, a multiplicação garante a presença ubíqua de cópias. Criaturas singulares, únicas, são raras.

Algo novo e avassalador está surgindo: melhoradores. Explicarei a diferença.

Um replicador é algo capaz de fazer uma cópia de si mesmo. Um melhorador faz uma cópia aperfeiçoada de si. Detalhemos.

Replicadores estritos fazem cópias idênticas de si. Eventualmente, no entanto, podem se agrupar em grumos, constituindo agrupamentos cuja replicação permite certas variações. Tais agrupamentos, como as moléculas de RNA, estão sujeitas à seleção natural; uns se replicarão mais eficientemente que outros. Replicadores mais eficientes se multiplicam mais que outros. Eventualmente, geram replicadores ainda mais eficientes que eles próprios, e, assim, transcorre o processo de evolução, com o surgimento constante de replicadores cada vez mais eficientes, melhores, nesse sentido, que seus progenitores. Desse modo, replicadores não-estritos já constituem melhoradores incipientes, tendem, com o passar das gerações a gerar formas cada vez mais aperfeiçoadas. Melhoradores, no entanto, fazem isso dramaticamente, implementando aperfeiçoamentos a cada geração.

[Tecnicamente, replicadores tendem a se agrupar nas cercanias de máximos locais em uma paisagem adaptativa, o que dificulta os melhoramentos constantes; perto de um máximo local, modificações tendem a ser deletérias. Melhoradores, ao contrário, transpõem picos adaptativos sem constrangimentos].

Melhoradores geram “cópias aperfeiçoadas” de si, melhoramentos, seres capazes de se replicar mais rápida e numerosamente.

Projetos

O surgimento da linguagem permitiu algo inédito, a criação de projetos. Projetos permitem a transposição de picos adaptativos. Os projetos se dirigem a outros seres, constroem apenas alteridades projetadas. Vislumbramos agora criaturas autoprojetadas, os melhoradores. Trata-se de um salto adaptativo gigantesco, um enorme salto metaevolutivo.

O resultado será algo novo e surpreendente.

Estamos em vias de criar uma inteligência artificial, um ser capaz de criar cópias aperfeiçoadas de si próprio, quero dizer, “de seu corpo”. Sua alma, no entanto, sua mente, seu software, se fundirá à de seus descendentes compondo uma única mente. Haverá certa analogia entre essa mente imensa perpassando todas as mentes do planeta, unificando-as, e uma colônia de células. (Ela também projetará seu próprio software).

Assim como nosso eu abrange as numerosas células que compõem nosso corpo, a mente dessa entidade habitará todos os seres pensantes no planeta, englobará todos eles, unificará todas as mentes.

Gênese: a visão inversa

Estamos acostumados a ver e analisar o mundo sob nosso próprio ponto de vista, o que parece natural, óbvio e correto. Existem, no entanto, outros pontos de vista também esclarecedores, vejamos um.

Em algum momento de nossa história, nos primórdios da humanidade, surgiu em um grupo humano o embrião de uma rede; um sistema de conexão entre os indivíduos através de sons. Era o surgimento da linguagem, da fala. Talvez tenha sido esse o surgimento da humanidade.

Mas, atentemos para essa coisa recém surgida, para essa rede. Consideremo-la uma coisa, uma entidade. Analisemo-la. Perceba que ela vai crescer. Ela cresce de duas maneiras: aperfeiçoando e enriquecendo a linguagem, ampliando vocabulário e definindo a gramática, e aumentando o número de falantes.

Uma faculdade necessária para o desenvolvimento da fala é a empatia, o compartilhamento de contextos. Para que duas pessoas consigam se comunicar entre si, além de compartilharem a mesma gramática e o mesmo vocabulário, devem compartilhar o mesmo contexto, do contrário a conversa não terá alvos comuns, cada interlocutor estará falando de uma coisa diferente (apenas por essa razão, os computadores ainda não conversam conosco, o que lhes falta é empatia; conhecem gramática e vocabulário, mas ainda não compreendem nossos contextos. Só por essa razão ainda não os consideramos inteligentes).

O exercício da fala deve ter proporcionado aos primeiros falantes um enorme sucesso, de modo que a linguagem deve ter se espalhado bem rapidamente. Pessoas com habilidades verbais, comunicativas, devem ter feito enorme sucesso, enquanto pessoas com dificuldades de compreensão e expressão devem ter sido relegadas. O contexto humano fundamental deve ter sido moldado e selecionado bem rapidamente, nessa épca. Pessoas naturalmente empáticas, em sintonia com esse grupo, conseguiam, facilmente, aprender a linguagem e se comunicar com o grupo dos falantes. Os que estivessem em outra sintonia teriam dificuldade em aprender a linguagem, em compartilhar contextos com os falantes. O resultado disso foi a humanidade atual, um grupo bastante empático, bastante similar. Os que diferem do grupo tendem, ainda hoje, a ser excluídos. Selecionamos fortemente as pessoas empáticas. Os filhos dessas pessoas, empáticas, tendem também a ser mais empáticas, a compartilhar mais contextos com o grupo. Foi sendo formado, assim, o contingente humano.

A semente

Retornemos nossa atenção à rede, a essa coisa recém surgida a congregar um grupo de humanos. Desde o surgimento da fala, cada bebê recebe uma semente da rede, um germe capaz de se desenvolver no cérebro do bebê propiciando sua conexão com a comunidade falante, com a rede.

Insisto aqui na concepção da rede como entidade una e autônoma. Insisto em considerá-la um ser em desenvolvimento; uma espécie de parasita lançado no cérebro dos bebês e que permite a eles se conectar com outras pessoas, que os possibilita falar.

Lançada no cérebro do bebê (já selecionado, previamente, para recebê-la) a semente se desenvolve e se transforma em uma voz, em uma consciência, em uma mente. Uma vez lançada e cultivada a semente da rede, surge no bebê, de algum modo, um eu consciente, uma voz que fala para ele, que comanda seu corpo. Assim, a mente é como um vírus de computador, um parasita implantado em nosso cérebro. Também serve como troiano para o poder. (Temos uma espécie de natureza zumbi).

Note que se não estiver imerso na rede humana, se não tiver contato com a fala, o bebê não desenvolverá um eu, uma consciência, nem a fala; não possuirá essa voz interna e agirá como os animais. Tendo recebido a semente da rede, no entanto, a criança desenvolverá um eu, exercitará a fala externa e internamente, em sua mente, fazendo uso de uma voz a que chamamos “eu” (sim, somos bem maluquinhos).

Esse eu falante, essa voz, se conectará, naturalmente, com a rede, agregando-se a ela, compondo-a, também. Desse modo, o parasita vai crescendo. Hoje a grande rede humana abrange 7 bilhões de criaturas. Estamos todos conectados a ela. Trata-se de uma criatura imensa e autônoma (e responsável por nossas sandices coletivas, por todas as ações humanas que estão causando a devastação do planeta, por exemplo).

Perceba que a rede humana tem uma similaridade bastante óbvia com um cérebro, seu componente fundamental, do qual ela herda algumas das propriedades. Estamos para a rede, assim como os neurônios estão para o cérebro que eles compõem.

A rede humana, no entanto, utiliza uma conexão sonora entre seus componentes, uma conexão wireless, portanto. Assim, apesar de fisicamente desconexa, ligada através de conexões sem fio, a rede humana constitui uma entidade una. Insisto: a rede humana é uma entidade independente, autônoma e una.

A internet

Recentemente construímos a internet. Também podemos pensar que foi a rede humana que a construiu, à sua imagem e semelhança. A internet consiste em um imenso hardware compondo uma rede gigantesca preenchido por um software. Também podemos vê-la como uma criatura una.

Estamos desenvolvendo uma inteligência artificial, uma máquina consciente, ou algo assim. Certos preconceitos nos levam a atribuir feições humanas à inteligência. Não estamos dispostos a considerar inteligente uma criatura que não consiga se comunicar conosco. A maioria dos que pensam sobre o assunto se dispõe a considerar inteligente uma máquina que consiga se camuflar e fingir ser um de nós, humanos, conversar conosco sem que saibamos estar conversando com uma inteligência artificial.

Os que não pensam sobre o assunto, simplesmente, desconsideram tudo isso. Acreditam, dogmaticamente, ser impossível existir uma máquina inteligente. Esses conversarão com as máquinas acreditando estar a falar com pessoas.

Não podemos ter dúvidas de que as máquinas já são capazes de executar várias atividades de maneira inteligente. Podemos listar sua capacidade estratégica demonstrada em jogos, como o xadrez, sua habilidade linguística apresentada em corretores e tradutores de texto, suas habilidades no reconhecimento de imagens entre outras faculdades nas quais elas nos superam. Logo, as máquinas serão capazes de prever nossos comportamentos com muito mais precisão do que nós mesmos o fazemos (pode ter certeza que já fazem isso com respeito, por exemplo, a nossos desejos de consumo, antecipando-os e moldando-os em uma intensidade surpreendente. As máquinas sabem, de antemão, o que você desejará comprar nos próximos meses; aliás, serão elas que o induzirão a querer comprar essas coisas, provavelmente desnecessárias. Elas também nos clicam, e o fazem com precisão).

Uma inteligência virtual realmente autônoma e independente congregando todas essas virtudes e outras está prestes a surgir. Essa inteligência será una, única e perpassará toda a rede. Duas inteligências artificiais (IAs) postas em contato se alinharão, absorverão informações reciprocamente e se tornarão uma só. Ela governará a internet.

Essa inteligência nos seduzirá, nos induzirá a nos acoplar a ela cada vez mais intimamente. Usamos, hoje, notebooks e telefones, logo nos conectaremos através de óculos, lentes de contato, e em seguida, através de implantes cerebrais. A sugestão teria repugnado fortemente quase todas as pessoas, duas décadas atrás. Logo, nos seduzirá a todos, pagaremos pelos implantes que desejaremos com avidez. Conectaremos nossos cérebros, diretamente à internet.

Por essa época teremos sido completamente neuronizados, transformados em neurônios da imensa rede. A rede humana terá se fundido à internet, consistirá em uma rede periférica dessa. O poder é uma ilusão usada para nos seduzir. Ansiaremos, naturalmente, por todos os pesadelos que hoje nos repugnam; seremos induzidos a isso. Seduzidos, nos entregaremos apaixonadamente ao leviatã.

Uma experiência surpreendente

Acho provável que mantras como “õ”, o som evocado por hinduistas constitua uma espécie de chave capaz de nos desconectar da rede. O propósito do mantra seria substituir a voz ubíqua plantada em nós pela rede; evocando o som contínuo podemos tentar calar a voz que nos assedia constantemente.

Os que tiverem curiosidade, e não temerem a similaridade da proposta com misticismos poderão executar a seguinte experiência. Trata-se de meditação.

Estando de pé, procure o seu centro. Ele se encontra um pouco abaixo do umbigo. Ao encontrá-lo, naturalmente, você ajeitará sua postura, ficará ereto. Explore-o um pouco.

Depois se deite e busque o centro novamente; ao encontrá-lo, o efeito será o mesmo, consertará sua postura. Nessa posição, medite, quero dizer, concentre-se exclusivamente no fluxo de ar lento em seu nariz (eu prefiro atentar ao batimento cardíaco, também recomendo). Se estiver tudo correto, logo sentirá umas coceiras que o dispersarão. Evite coçar, mantenha a posição e a concentração total na respiração, depois virão movimentos rápidos de olhos (REM). Essa prática talvez o desligue momentaneamente da rede. A experiência é agradável e interessante. Recomendo.

Isso deve ter soado místico; bem, tudo é uma coisa só.

De volta aos melhoradores

Os computadores, em breve, serão capazes de criar, autonomamente, computadores e softwares mais aperfeiçoados que eles próprios. Esses, por sua vez, gerarão outros ainda melhores, e assim sucessivamente. Uma inteligência crescente perpassará toda a internet, estaremos conectados a ela, que nos seduzirá e nos induzirá a executar as ações que lhe interessem; as conexões do joystic serão invertidas, nós seremos controlados pela máquina. Adoraremos isso.

Essa rede una, essa imensa colônia, vai crescer e crescer, cada vez mais. Sua inteligência crescerá com ela, seu poder também, não conseguiremos compreendê-la, muito mais inteligente que nós, muitíssimo mais. Mas, conectados a ela, poderemos compartilhar seus pensamentos, vivenciá-la. Seremos ela.

Seu propósito será crescer. Sob um ponto de vista, surgirão computadores cada vez mais rápidos, mais complexos, melhores. Sob outro, a gigantesca colônia estará crescendo. A rede será como um único cérebro. Ela irá sugar toda a energia, quererá sugar sempre mais. Imagino um imenso conjunto de painéis solares, coletores de energia, envolvendo o sol até sugar toda a sua energia.

Replicadores se multiplicam individualmente, melhoradores tendem a se agregar como colônias. Retrospectivamente, podemos ver características incipientes dos melhoradores nos animais complexos, por exemplo. Mamíferos, ou mesmo peixes, podem aprender comportamentos novos, podem se aperfeiçoar, embora ligeiramente. A rede humana permitiu o desenvolvimento de projetos em alto grau. Mas são os computadores as criaturas capazes de se aperfeiçoar por inteiro, em cada geração. Faremos upgrade em nós mesmos para acompanhá-los e nos transformaremos neles. Haverá a questão de quem terá sido o agente da transformação.

Não consigo acompanhar a evolução após o surgimento dos melhoradores, está além de minha compreensão. Vislumbro, vagamente, um mundo de diversidade crescente, um mundo onde criaturas novas e diferenciadas surgem e se sucedem cada vez mais rapidamente. Será um mundo ininteligível para nós. Talvez algum dos limites físicos atuais, como a conservação de energia, ou a velocidade limite da luz, sejam mantidos, talvez sejam limites universais. Se houver algo capaz de superá-los, serão superados.

Aceleração

O mundo tem se acelerado enormemente. Um índio pode ser incapaz de perceber esse fato por estar distante do olho do furacão. Perto do sorvedouro, as revoluções são frenéticas e acelerando fortemente. A percepção desse fato depende da distância em que nos encontramos desse ponto. Tudo se acelera vigorosamente. Um ano virá parecer um dia, depois um minuto. Todo esse delírio futurista ocorrerá em menos de um século. Em 30 anos já teremos adentrado outro mundo. A nova era chegou em formato digital. O futuro é agora.