Lucrécia: a cidade sitiada

O status psico-sociológico da personagem

Como supra característica de Clarice Lispector, a obra A Cidade Sitiada, exemplifica e expõe de maneira quase palpável, a reação do personagem mediante ao ambiente pelo qual está envolto. O mergulho ao âmago, a tentativa de decifragem do turbilhão de recorrências internas, ou talvez a sondagem da possível não existência destas, torna-se o carro-chefe desta obra.

O ambiente é tratado com total reciprocidade junto ao personagem, visto que a completude destes é de absoluta notoriedade. As reações da personagem Lucrécia estão em total sincronia ao movimento de S. Geraldo. “A praça estava nua. Tão irreconhecível ao luar que a moça não se reconhecia”, p. 19. A agnação entre o ambiente e a personagem revela a dependência de ambos para a construção da narrativa. Não há a mecanização do cenário que em certo ponto adquire personalidade e se longínqua do mero paralelismo, mas, produz a simetria entre Lucrécia e o ambiente, como em: “A realidade precisava da mocinha para ter forma”, p. 23. Lucrécia faz do ambiente e o monta a partir não do que sente ou do que parte do seu interior, mas, a partir daquilo que vê. “Tudo o que Lucrecia Neves conhecia de si mesma estava fora dela: ela via”, p. 70.

Interessantemente, a atração e a soberania que S. Geraldo produz na personagem, revela-se à medida extrema de des-humanização e aproximação do sujeito com o objeto, que ocasiona a abolição de vínculos integrativos dos personagens entre si. Desta forma, ocasiona no leitor uma inquietude e não obstante, o questionamento da existência da personagem visto que esta não apresenta sinais de vida – no âmbito da recorrência crítica e de dialogação -, sua inércia e passividade nos eventos que minam seu comportamento buscando qualquer interação ou até mesmo uma dormência pela pacaticidade de S. Geraldo.

A relação entre os personagens possui em seu cerne uma densidade plena, a obscuridade que fazem em suas compreensões não proporcionando em momento algum a sinergia entre suas motivações para sobrevivência. Essa opacidade presente na escrita de Clarice e carregada com total propriedade em Lucrécia mostra des-localização da personagem para consigo. A mutação de individuo para a “coisa”, a formação de seres “inanimados” (monotonia, sensaboridez), cristaliza esta des-comunicação. S. Geraldo ocasionava tal composição de maneira que a cidade não girava a partir da essência dos personagens, mas em contra, os personagens adquirem o formato bruto de S. Geraldo. Lucrécia possuía este formato, visto que seu comportamento batia no compasso monótono de S. Geraldo, seu coração acompanhava este ritmo. Com total evidencia, Lucrécia tinha seus anseios e ambições, casar-se com alguém que pudesse tirá-la do tédio, sitiada pela própria cidade, pois estas eram anuladas pela força mórbida de S. Geraldo. Mesmo com a oportunidade do casamento, Lucrécia é cativa e não possui reação alguma, a não ser, entregar-se à mediocridade. O perfil da personagem se resume no olhar, e de tal maneira, não agrega conteúdo daquilo que vê, mas em contrapartida, se realça a epifania, pois seus espantos mediante as coisas corriqueiras se tornam intensas no comportamento da personagem como se mostra na passagem: “Tão lentos e difíceis os dois estavam que viam com teimosia a coisa de que eram feitas as coisas, e que envolvia a cara da moça com a mesma estridência do besouro sobre aquela haste. "Olha só o besouro!", p. 33.

De forma como S. Geraldo e a população vivente ali não possuiam a interferência direta e alentada com o restante do mundo. Esta alienação é transmitida em em Lucrécia, anulando suas vontades.

Como seu jeito peculiar, a personagem não possuia rastros de belezas que pudessem chamar a atenção e pelos menos assim, libertá-la da “mediocridade”. “Lucrécia Neves não seria bela jamais. Tinha porém um excedente de beleza que não existe nas pessoas boni¬tas. Era basta a cabeleira onde pousava o chapéu fan¬tástico; e tantos sinais negros espalhados na luz da pele davam-lhe um tom externo a ser tocado pelos dedos. So¬mente as sobrancelhas retas enobreciam o rosto, onde al¬guma coisa vulgar existia como sinal apenas sensível do futuro de sua alma estreita e profunda. Toda a sua natu¬reza parecia não se ter revelado: era hábito seu inclinar-se falando às pessoas, de olhos entrefechados — parecia então, como o próprio subúrbio, animada por um aconte¬cimento que não se desencadeava. A cara era inexpres¬siva a menos que um pensamento a fizesse hesitar”, p. 25.

Diego Guima
Enviado por Diego Guima em 08/07/2007
Código do texto: T556738
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