Um Riacho que virou Valão

As águas penetram no modo de vida litorâneo ditando as regras do proceder cotidiano. As sangas, arroios, banhados, lagoas, rios e o mar cercam os horizontes da planície costeira. São corredores e canais naturais que fornece o abastecimento de água para as comunidades, a prática do extrativismo de moluscos e a pesca que agregam substancialmente na economia doméstica. Estes mananciais hídricos eram utilizados para a navegação e o deslocamento de pessoas e produtos coloniais. As artérias líquidas que se distribuem dos Campos de Cima da Serra até o Litoral desenharam os contornos dos povoados, vilas até as cidades atuais. Os povos nativos sabiam que deveriam se adaptar ao terreno alagadiço e desenvolver técnicas de navegação e construção de embarcações compatíveis com as características do território. O fluxo das correntezas impuseram as regras a serem rigorosamente obedecidas pelos povos que se estabeleceram entre as areias e o mar. O livro intitulado “Navegação Lacustre – Osório a Torres (3° edição, Evangraf, 2014)” da autora Marina Raymundo da Silva aborda os aspectos históricos desta modalidade de transporte muito utilizada entre as imensas lagoas do litoral norte do Rio Grande do Sul. No início do século XX existiam projetos portuários e de alargamento dos canais entre as lagoas para a conexão entre o litoral gaúcho e o extremo sul catarinense até a histórica cidade de Laguna/SC.

Muitos riachos tornam-se referências naturais no meio urbano e rural. Na cidade de Torres/RS existe um riacho que se transformou no “Valão”. O riacho remete a poética da paisagem original, uma cena composta por vegetação diversificada e um córrego límpido que liga a Lagoa do Violão ao Rio Mampituba. Uma dinâmica particular da ordem natural transpassada pelo ciclo lunar, as precipitações pluviais e as oscilações marítimas. O termo pejorativo “Valão” remete a insalubridade, depósito de rejeitos e dejetos, um ambiente impróprio ou literalmente, uma vala comum. Houve o desenrolar de um processo histórico e descaso com o riacho para que se transformasse num valo abandonado. Acompanhando suas margens numa das vias mais movimentadas da cidade, a Avenida do Riacho, podemos evidenciar três momentos distintos: a) nas proximidades do rio prevalecem os aspectos primitivos e originais do canal; b) na região central entre as avenidas Barão do Rio Branco e José Bonifácio houve a pavimentação artificial do riacho no intuito de delimitar suas extremidades; e por fim, c) perto da Lagoa do Violão construíram a cobertura do duto ofuscando a percepção do canal. Uma tentativa de “tirar da vista” aquilo que não temos como solucionar. O riacho se configurou historicamente num patrimônio natural de utilidade pública e coletiva e ao longo do tempo foi impactado pela urbanização sem a devida preocupação com a preservação do seu entorno.

A memória social revela o trânsito e importância do riacho para a mobilidade das comunidades e para o escoamento e comercialização de mercadorias e produtos. Pequenas embarcações e canoas navegavam da zona rural pelo rio e adentravam no riacho, no sentido da lagoa para chegar a sede da vila de São Domingos das Torres que se desenvolvia nos idos do século XIX. Canoeiros comercializavam carregamentos de madeira para as caieiras na Praia da Cal e para a Usina que existia nas margens da lagoa nas primeiras décadas do século XX. O conhecimento histórico trará subsídios para a urgente Revitalização do Riacho. No município de Arroio do Sal, o projeto de registro das memórias das Lavadeiras da professora Ana Beatriz Barbosa Ferreira tornou-se o dispositivo necessário para a valorização do arroio que deu nome a cidade. Este projeto de vanguarda no sentido de reconhecimento e valorização do patrimônio imaterial teve o financiamento do Revelando os Brasis (veiculado no Canal Futura) e culminou na produção de um documentário chamado “Lavadeiras: O Viver das Águas”.

Certo dia mencionei ao amigo Jorge Herrmann que iria encontrá-lo para uma reunião no Espaço Mar, perto do “Valão”. Imediatamente, fui repreendido: “No Valão não, no Riacho...” e acabei me deleitando com sua sensibilidade, respondendo: “O cordão umbilical entre as lágrimas de Ocarapoti (referência a lenda da lagoa do Violão) com o Iboipetuba ( topônomino tupi-guarani que se tornou Mampituba)...” Realmente, Jorge estava correto em sua afirmação: Estava eu reproduzindo o histórico descaso com riacho? Certamente... Ainda bem que entramos num acordo!

Pensar e interagir com os elementos referenciais da cidade por perspectivas alternativas é fundamental para a identidade das comunidades que se enxergam nas esquinas, ruas e espaços públicos. O desprezo resultou no afamado “valão” que retoma seu protagonismo durante as enchentes. As inundações indicam que a negligência e a ignorância foram derradeiros fatores que transbordaram em sérias consequências para a população torrense que navega no limiar do século XXI. Enquanto isso, assistimos calados o ocaso de mais um córrego que se afogou na poluição.

Publicado no Jornal Litoral Norte RS e jornal A Folha/Torres.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 17/03/2016
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