A MAÇONARIA E O MITO SOLAR   
 
 
A ideia de que Deus é pura luz e o que o nosso espírito é feito de luz é uma intuição bastante antiga que já existia nos tempos mais primitivos da civilização humana. Os persas e os hindus, em épocas anteriores a Zaratrusta (século XII a.C), já possuíam uma noção bastante avançada desse conceito, pois sustentavam a existência de dois princípios a reger a vida do universo. Esses princípios eram representados pelos deuses Marduc (Ahura Mazda, a luz) e Arimã, as trevas, que simbolizava a noite. Paralelamente, numa crença que tem, provavelmente, a mesma idade que a tradição religiosa persa, os egípcios também desenvolveram uma teogonia que se baseava em um conceito similar, pois colocava o deus Rá, simbolizado pelo sol, como a divindade suprema do seu panteão, a quem estavam submissas todas as outras deidades. E do outro lado o demônio Tifão, habitante das trevas, como contraponto desse poder, fórmula essa que seria reproduzida no mais famoso dos dramas iniciáticos dessa civilização, os Mistérios de Ísis e Osíris.[1]
     Similarmente, os povos da Mesopotâmea identificavam um fenômeno luminoso, representado pelo sol, como princípio gerador da vida em todo o universo. Destarte, todos seus deuses tinham vindo do espaço, sendo Baal aquele que representava o astro rei. A própria ação civilizadora da humanidade teria sido, conforme antigas crenças sumérias, uma realização desses deuses astronautas, que á terra teriam baixado em uma expedição de exploração e aqui deram início á uma colonização.[2]
 Assim, podemos dizer que a maioria dos povos antigos desenvolveram religiões solares, onde o astro-rei aparece como origem e mantenedor da vida. Essa cultura religiosa floresceu também entre os primitivos habitantes do Novo Mundo, com destaque entre os povos astecas, maias e incas, os quais, com poucas variações, praticavam religiões solares que ainda hoje, mesmo cristianizados, os habitantes das regiões onde essas civilizações floresceram, conservam alguns mitos.
     A influência do mito solar, entretanto, era tão forte entre os antigos, que nem os israelitas, povo inovador em termos de religião, escapou dela. Embora os israelitas tenham sintetizado os atributos da Divindade em um conceito abstrato, lançando a ideia de um Deus  espírito que não podia ser representado por nenhuma forma que a mente humana pudesse imaginar, eles não conseguiram fugir da noção de que Deus é, em essência, a energia que se manifesta em forma de luz. Assim, o primeiro ato de Deus, ao fazer o mundo, segundo a Bíblia, foi “libertar a luz”. Pois conforme diz o texto sagrado, o primeiro comando divino ao criar o mundo foi “ Haja luz.[3]   
      E mais tarde, quando quis se manifestar a um ser humano, Ele o fez de dentro de uma chama, ou seja, uma forma luminosa, simbolizada por uma sarça ardente, material que não se consumia, porque, na verdade, era o reflexo da Luz de Deus.[4] 
 Por isso, toda jornada iniciática consiste numa fórmula para libertação da luz que se supõe existir no interior de todo ser humano. Todavia, o que significa “libertar a luz?” Certamente não é fabricá-la, pois fabricar sugere uma ação modificadora sobre uma matéria prima pré-existente, transformando-a em produto. A Bíblia diz que Deus “tirou” a luz de dentro das trevas e com ela fez surgir o dia e com a escuridão produziu a noite.
Grandiosa metáfora essa. Pois o dia corresponde á realidade observável, ao universo real, ao chamado mundo manifesto, á tudo aquilo que se vê, enquanto que a escuridão, a ausência de luz, corresponde exatamente ao mundo das trevas, aquilo que está oculto, o que não pode ser visto, mas que pode ser desvelado quando sobre a escuridão fazemos projetar a luz do nosso entendimento. Por isso os fenômenos psíquicos da descoberta, do insight, da sabedoria, estão sempre ligados á ideia da iluminação, ou seja, lançar a luz sobre um objeto desconhecido, ou mesmo “acender a luz” dentro da nossa consciência.
     Isso pressupõe que o universo, tal como o vemos, é feito de luz, embora parte dele permaneça nas sombras porque sobre essa parcela da realidade existente a luz do nosso entendimento ainda não a alcançou.
     No entanto, a realidade é luz e a verdade se reveste dela. Por isso os Evangelhos do Novo Testamento fazem larga utilização dessa simbologia para se referir á doutrina de Jesus, sendo ele próprio chamado de “Luz do mundo”.[5]
     Corroborando essa visão os cientistas dizem que o universo saiu de dentro de uma Singularidade que explodiu. O que era essa Singularidade, ninguém se arrisca a definir. Alguns falam em “campo energético” outros dizem que era uma estrela, outros um buraco negro, um átomo etc. Porém, nem a Bíblia escrita nem a ciência moderna explicam o que havia antes dessa explosão e o que Deus era e fazia antes de começar a fazer o universo. Mas para algo sair de dentro de alguma coisa é preciso que esse algo tenha uma existência anterior ao próprio parto. Não pode simplesmente “nascer” um ser que não tem existência anterior ao nascimento, sendo o nascimento apenas o seu ingresso na esfera da existência positiva.
     Nascer é uma etapa posterior a gerar. Só pode nascer algo que foi gerado. E só pode gerar algo quem tem o poder para isso. Por isso o mestre cabalista diz que “Deus, quando quis criar o universo, velou sua glória e nas pregas desse véu projetou sua sombra”. Isso quer dizer: Deus existia antes mesmo da criação do universo. Tornou-se sombra para nela concentrar a sua energia. Comprimiu-se até o limite do zero absoluto. Por isso Ele era a luz que existia dentro da própria sombra, ou como quer a ciência, a energia contida no corpo celeste que originou o Big-Bang. Na linguagem da Cabala, esse fenômeno é designado pela expressão Tzim-Tzum.[6]      
 
     De um modo geral os cientistas concordam que o universo nasceu caótico e desordenado. No início era como a energia de uma bomba que explode e expele a sua força destruidora para todos os lados. Mas quando ele começa a ser organizado, quando a energia saída do Big-Bang começa a se transformar em massa, gerando os grandes corpos celestes e os sistemas siderais, todo o processo de construção universal passa a obedecer a um comando único: a lei da união. Essa lei se traduz pela força da energia existente em cada corpo, que faz com que cada um procure o seu complemento para com ele se unir e deixar a simplicidade da sua estrutura, adquirindo a qualidade do complexo, que é a marca da evolução. Cosmicamente, as estrelas se juntam em galáxias e os planetas se aglomeram em volta de estrelas para formar os sistemas. E no interior dos sistemas, os átomos se juntam para formar os compostos, os compostos para formar moléculas, as moléculas para formar organismos, sempre no sentido de uma Evolução dirigida. Fisicamente, é a prevalência da luz maior sobre a menor, a energia mais forte sobre a mais fraca, a força natural da atração, firmada na quarta Lei de Newton, segundo a qual "matéria atrai matéria na razão direta do volume de suas massas e na razão inversa do quadrado da distância entre elas”. Isso tudo pode ser traduzido pela lei da União, conhecida pelos cientistas como Lei da Gravidade, que o Criador colocou no núcleo de todo grão de matéria, para fazer com que a totalidade dispersa, em dado momento da vida cósmica, se reúna em um ponto único, que é, como bem viu Teilhard de Chardin em sua extraordinária visão hiperfísica do universo, o destino finalístico da obra de Deus.[7]    
     Nasce daí a ideia arquetípica da existência de uma deidade máxima, primeiramente simbolizada pelo sol, que os antigos povos cultuavam como princípio e fim de todas as coisas, de onde tudo vinha e para onde tudo voltava.
     E nasce também desse pressuposto a função específica do pensamento humano, cujo objetivo imediato é produzir, na escala da sabedoria cósmica, um fenômeno semelhante. Pois que a função da mente do homem é justamente dar ordem ao caos da materialidade, identificando e catalogando todas as realidades que saem do útero cósmico. Por esse motivo nos foi dada a capacidade de pensar para conhecer. E essa, precisamente, é a razão pela qual a sabedoria nos aparece como sendo um fenômeno luminoso produzido pela ação da nossa consciência sobre o objeto que ela se propõe conhecer. Por isso a metáfora “lançar luz sobre as coisas” designa exatamente essa propriedade da mente humana de revelar o que está oculto nas sombras da ignorância, nas trevas da obscuridade, na impenetrabilidade do quarto escuro, onde os mistérios do universo aguardam o foco de luz que a lanterna da inteligência humana projetará sobre eles para serem revelados. Isso é o que, na Maçonaria, significa por Ordem no Caos (Ordo ab Chaos). No nosso sistema essa “Ordo ab Caos” é realizada pelo poder do Sol, cuja força de atração mantém girando em volta dele os planetas. Justifica-se, portanto, que todas as religiões, de uma forma ou de outra, estejam ligadas ao mito solar, pois é a sua luz a responsável pela vida na terra. Não é outra a razão de a Maçonaria cultuar, entre os seus símbolos, o Sol, que na Loja é representado pelo Venerável Mestre em seu trono. [8]
 
      Jesus expressou essa ideia quando colocou para os seus discípulos a expressiva parábola que diz: “Ninguém acende uma lamparina e depois a coloca debaixo de um cesto ou de uma cama. Pelo contrário, a lamparina é colocada no candeeiro para que todos os que entram vejam a luz. Pois tudo o que está escondido será descoberto, e tudo o que está em segredo será conhecido e revelado.”.[9]
     Isso porque nada ofusca o brilho de Deus nem apaga a luz que Ele dá aos homens. Não há poder no universo que não seja dado pelo brilho da sua luz. Por isso o poder do homem está naquilo que ele sabe, naquilo que ele aprende e consegue usar para o seu próprio benefício e da espécie a qual ele pertence.
     E como Deus é pura luz, a ele só nos integraremos quando nós mesmos também formos luz purificada. Nessa meta se consumam todas as escatologias.[10]
     Essa é razão pela qual toda disciplina iniciática buscar, simbolicamente, levar o iniciado a um estado em que ele possa, livremente, liberar a própria luz que nele existe. Aquela "luz interdita” contida, presa na matéria pela condição de profano em que ele se encontra até adquirir a iluminação.[11]
     Dai as perguntas contidas no ritual de iniciação maçônica que se refere ao "temerário que tem o arrojo de querer forçar a entrada no Templo" e a consequente resposta que diz tratar-se de "um pobre candidato que caminha nas trevas e, despojado de todas as vaidades, deseja receber a Luz". E também o motivo do porque ele, antes de ser efetivamente iniciado nos Mistérios Maçônicos, ter que conviver com as trevas, a ideia da morte e a escuridão do seu próprio interior psíquico. É que para receber a Luz é preciso, primeiro, saber no que consistem as trevas. Ou seja, praticar ritualisticamente o próprio Tzim-Tzum. Isso é repetir o mesmo ato praticado pelo Criador na transposição de Si mesmo do Véu da Existência Negativa para o Véu da Existência Positiva.   
     E por fim a apoteose final da iniciação, que revela o cerne do simbolismo contido nesse verdadeiro culto á Luz, que está implícito em praticamente todas as doutrinas iniciáticas, o qual a Maçonaria conservou como sua primeira e fundamental proposta espiritualista. No momento em que lhe caem as vendas dos olhos, como ao rabino Saulo diante do sacerdote cristão Ananias, é que o iniciado vê o novo mundo que se abre diante dos seus olhos. E é então que se revela o magno mistério que todos os espíritos procuram quando buscam a iniciação maçônica:
        *
     *   * NO PRINCÍPIO DO MUNDO, DISSE O GR.’. ARQ .’. DO UNIV.’.:
 
  1. ─ FAÇA-SE A LUZ,
    ─ A LUZ FOI FEITA.
    ─ A LUZ SEJA DADA AO NEÓFITO. [12]

[1] Teogonia é a doutrina mística que explica o nascimento do universo através da ação dos deuses. Nos Mistérios Egípcios, Osíris simboliza a luz, e seu invejoso irmão Sethi, as trevas. Ver, a esse respeito, o excelente estudo de Arthur Verluis “Os Mistérios Egípcios” publicado pelo Círculo do Livro, 1986
[2]Tese defendida pelo arqueólogo Zecharias Sitchin. Ver nesse sentido sua obra O Décimo Segundo Planeta- Ed. Madras, 2012
[3] Gênesis, 1:3
[4] Êxodo, 3:2
[5] João, 8;12 – Essa é a razão de em alguns sistemas gnósticos, o Cristo ser considerado um deus solar.     
[6] Tzim-Tzum, em hebraico quer dizer, “contração”. Dizem os mestres cabalistas que Deus “contraiu” a sua infinitude para “caber” dentro de um espaço finito (o universo). Por isso eles definem o universo físico como a “pressão de Deus sobre si mesmo” e o Big- Bang é o “parto de Deus”.
[7] Teilhard de Chardin- O Fenômeno Humano, Ed. Cultrix, 1968.  Finalístico sim, e não final, porque sendo o universo resultado de energia que se transforma, ele nunca se acabará.
[8]Lucas: 8:16:18
[11] A expressão “luz interdita” se refere ao fenômeno luminoso que é associado á uma partícula atômica de alta radiação.
[12] Cf. O Ritual do Aprendiz- GOB- REAA- Imagem: Revista Universal Maçônica.