Caso especial dois

Tratado de uma mãe esquizofrênica

Por: Valéria Matos Escobar

Entrou pela porta da sala sem reservas, sem pedir licença, visivelmente atormentada. Queria muito mais do que denunciar uma atitude inaceitável. Seu desejo era mesmo o de esganar a infratora. Vociferou meia dúzia ou mais de impropérios até dizer algo que calou qualquer tentativa de defesa. “Ela beliscou meu filho, e ele não mente”. Exigiu a presença da professora naquela sala fervilhante. Meu olhar oscilava entre os olhares de cólera desta, de medo daquela e lá mais adiante,do lado de fora, encontrava ainda o olhar do menino, tão menininho! Olhos esbugalhados, sôfregos, tormentosos. Olhos que diziam “Acho que disse alguma coisa que não deveria ter dito...”

Tentava eu argumentar, entrever os meandros daquela história que lá estava esparramada sobre aquela sala quente. A professora jurando nunca ter beliscado aluno algum, a mãe furiosa acredita no filho e ralha, convocando o pequenino à delação da malfeitora. “Será que a professora pegou-o pelo braço e como tem mãos fortes e cheias, pareceu-lhe um beliscão?” Eu não sabia mais o que falar diante de cena mais vexatória. Não pude conter a entrada da criança naquele descomedimento. A professora não alterou a voz diante das acusações enquanto entre uma ponderação e outra consegui tirar o pequeno daquele cenário carregado de intenções. A mãe, de súbito, voltou-se para a professora que até o referido episódio, nunca tinha visto (só para esclarecer, ainda não havia aparecido na escola até então) “você é parecida com a minha mãe” emendou... “Meu filho está muito sensível, chorando por tudo. Ele vê muita coisa... Na noite passada não dormiu, ajoelhado sobre minha cama, vigiando. Ouço vozes, uma ruim e outra boa. A ruim me manda fazer coisas contra mim. O psiquiatra que me assiste foi mandado embora, dizem que é negócio de política e o outro que ficou em seu lugar é mais louco que os loucos. Tenho surtos, não trabalho mais, pois ataquei minha colega, a mais querida. Ela também foi mandada embora. Fiz de tudo, pedi por ela, mesmo assim a coitada não recuperou o emprego, acho que me odeia e eu sinto tanta pena dela... Tive outro surto esta semana, costumo me machucar. O que tenho? Um monte de Cid, tenho uma tal de esquizofrenia mas estou segurando nas mãos de Deus para me libertar dos remédios”...Encerrou dizendo que estava bem melhor e que a conversa, a sessão de terapia tinha deixado-a bem melhor.

Falei muitas coisas durante toda a conversa paranóica, sobre a importância de poupar o menino que vivenciava situações tão pesadas e deprimentes. Cavuquei até chegar onde nem eu mesma gostaria de ter alcançado. Esquizofrenia... Deixar de tomar medicamentos... “Você está indo bem-tentei. Buscando ouvir a voz boa. Deus dá a vara e ensina a pescar-metaforeei. Ele capacitou o homem para criar os medicamentos que nos deixam melhor. Assim Ele nos salva, é um jeito de nos salvar”. Parece ter entendido que seria legal insistir com os remédios, pediria ao marido para levá-la ao médico demitido.

De toda essa nova experiência sobrou a ressaca nos olhos meus e nos da professora. A noite já se debruçava sobre a Terra e fomos embora. A mãe sorridente e aliviada. O filho, certamente estranhando o rumo diferente da história que há pouco presenciara, antes de ser salvo pelo pátio da escola. Estranho e exausto pela noite anterior onde ficou velando, guardando, sentinela tão pequeno da mãe atormentada. A professora, retirante silenciosa, refletiria, é possível, sobre a necessidade de olhar para muito além do aluno, da carteira, da lousa e da sinuosa arte de ensinar e eu... Ah, se não escrevesse iria colapsar. Por isso, ainda embriagada, apesar do refluxo, ensaio isso tudo que mais pareceu um devaneio.

Outrora, nesta mesma sala um aluno aflito no mais alto do seu sofrer, confidenciou-me as agruras de conviver com uma mãe esquizofrênica. Agora, ouço, vejo de perto uma mãe esquizofrênica, narrando um tratado de suas próprias loucuras. O menininho ainda não tem a dimensão da demência, acha que vai passar, como uma gripe forte.

06/04/16

valeria Matos Escobar
Enviado por valeria Matos Escobar em 07/04/2016
Reeditado em 07/04/2016
Código do texto: T5597360
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