Notas sobre uma engenharia filosófica e a elaboração de conceitos, ou, como teorizar

Tendemos a pensar, muito ingenuamente, que nosso discurso corresponde a uma transcrição da realidade, que, tendo observado o mundo, o traduzimos nas palavras que usamos para falar. Acreditamos, desde crianças, que nossas palavras derivam diretamente das coisas e constituem correspondências claras e imediatas com elas.

Nossos conceitos, no entanto, são artefatos extremamente elaborados. Constituem criações de nossa mente capazes de descrever coisas, fatos, ações, relações e uma infinidade de outros referentes, muitos deles abstratos e enormemente complexos. Apenas nossa familiaridade faz com que acreditemos na simplicidade e naturalidade de certos conceitos, como árvore, planta, ou pedra. Embora dominemos o uso de tais palavras desde crianças, ao tentar defini-las percebemos corresponder a construções bastante complexas, ainda que familiares. (Também costumamos confundir simplicidade com familiaridade). As definições de ações, representadas pelos verbos, e de relações parecem ainda mais elaboradas e distantes de uma transcrição direta de qualquer fenômeno observado.

Assim, as palavras estão muito longe de ser algo emanado pelo mundo e capturado por nossas mentes, mas são construções nossas, artefatos complexos, todas elas, mesmo que nossa familiaridade com algumas delas as façam parecer simples e óbvias; constituem ficções produzidas para funcionar como analogias.

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O domínio de uma dada área do conhecimento, de uma ciência, por exemplo, pressupõe a familiaridade com um vocabulário específico, próprio de cada área. Uma parte considerável do esforço de compreender uma ciência consistirá em dar sentido aos conceitos daquela área, em interpretar um certo conjunto de palavras utilizado para compor um corpo de conhecimentos.

Uma vez apreendido, um conceito pode se tornar, tanto uma ferramenta, quanto um material para a elaboração e encadeamento de novos conceitos. Qualquer corpo de conhecimentos será composto por uma conceituação, será definido por conceitos, e não diretamente pelas coisas, como uma visão infantil sugeriria. Assim sendo, qualquer que seja a nossa formulação, terá sido sugerida, ou ao menos, filtrada por nossa conceituação prévia. Nada conseguiremos dizer, ou pensar, sobre algo a respeito de quê não dominemos os conceitos. Podemos evocar lembranças juvenis de quando presenciávamos debates sobre economia, matemática, ou qualquer outra área cujas discussões, para nós, então, consistiam em um amontoado de sons, em um conjunto de palavras estranhas, e não interpretadas, aglutinadas em um palavrório absolutamente sem sentido. Sem a posse dos conceitos, qualquer discurso que ouçamos permanecerá vazio, sem nenhum nexo.

O trabalho dos grandes cientistas consiste, fundamentalmente, na construção de novos conceitos. A “constatação” de Galileu de que os corpos caem com a mesma velocidade equivale, de fato, a uma definição de velocidade. Ao experimentar 2 corpos caindo, temos a nítida sensação de que o corpo mais pesado cai com mais … err... “intensidade” que o outro. Palavras como “velocidade”, “intensidade”, “força”, “potência”, provavelmente se confundiam, até então.

Newton definiu muito clara e precisamente conceitos como velocidade, sendo essa a taxa de variação temporal do espaço, ou dS/dt. Também definiu aceleração, como a taxa de variação da velocidade, dv/dt, e força = m.a. A definição dos conceitos permite e sugere desenvolvimentos posteriores que não poderiam ser nem compreendidos nem descritos anteriormente.

Einstein alterou TODA a conceituação newtoniana. Muito provavelmente, foi a maior revolução conceitual já realizada. Não deixou pedra sobre pedra, tudo, absolutamente, foi alterado pela reconceituação einsteiniana. Note que enquanto tempo e espaço newtonianos são absolutos e independentes do observador, tempo e espaço einsteinianos dependem do sujeito, não havendo, por exemplo, uma simultaneidade com a qual todos concordem, nem uma medida absoluta das dimensões dos corpos, independente de quem as meça. As modificações nessas concepções se propagam a todas as outras, de modo que nada escapa da reformulação proposta por Einstein. Digo “reformulação” porque, surpreendentemente, a estrutura da mecânica relativística mantém-se surpreendentemente análoga à newtoniana, apesar de radicalmente diferente dessa. É comum minimizarem a revolução efetuada por Einstein considerando apenas os aspectos instrumentais das teorias. Instrumentalizadas, destituídas de interpretação, ambas as teorias são bastante assemelhadas devido à analogia de suas estruturas. Uma vez interpretadas, no entanto, uma vez explicitados os conceitos e compreendidas as interpretações, a revolução einsteiniana se revela radical e contundente.

A reformulação quântica, também profunda, não mantém tão claramente, uma analogia com a precursora, não me parecendo sempre óbvio constituir, de fato, uma mecânica. Incorpora também uma revolução conceitual.

Há quem acredite que tais teorias correspondam à verdade, crença ingênua e análoga à dos que criam na infalibilidade da mecânica de Newton. Esses imaginam que a física já está quase pronta, e que já descobrimos a verdade sobre esses aspectos do mundo.

No futuro, em poucas décadas, espero, as formulações científicas atuais serão vistas como errôneas e substituídas por outras. Não conheço qualquer objeção à física relativística exceto possíveis e incômodas viagens no tempo que provavelmente multiplicarão os mundos à maneira de Hugh Everett. (Buracos negros podem ser direcionais, permitindo a saída deles através de determinadas direções. Isso talvez permita o retorno de informações advindas do futuro). As restrições quânticas, por outro lado, em breve se tornarão incômodas o suficiente para que sejam rompidas e aceitas como refutações da teoria, fato que incomodará os poderosos. Talvez tenhamos que construir, em breve, uma nova mecânica, o que exigirá a construção de novos conceitos que, por si, suscitarão novas formulações e novos problemas. Isso consistirá em uma nova física, radicalmente diferente da atual.

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Velhos conceitos sugerem sempre os mesmos velhos problemas e as mesmas antiga formulações. A construção de novos conceitos sugerirá novas formulações. Devemos ter em mente esse fato sempre que tentamos abordar um novo problema, e não nos privar da tarefa de definir conceitos novos. Ao contrário, devemos, ativa e conscientemente, construir conceitos novos mesmo sem saber exatamente com que propósitos eles serão utilizados.

Novos conceitos consistirão em novos materiais e novas ferramentas que serão utilizadas na construção de teorias científicas, filosóficas, ou em quaisquer outras teorias interpretativas. Assim, não nos furtemos de definir novas palavras, de construir novos conceitos, mas, ao contrário, empenhemo-nos, conscientemente na construção de novos conceitos, tijolos e formões com os quais construiremos novas teorias.

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De posse de novos conceitos, e fazendo uso das regras gramaticais, lógicas e eventualmente, matemáticas, perceberemos a naturalidade com que eles se ajustam e se relacionam uns com os outros. Estabeleça conexões lógicas entre novos conceitos fazendo uso das regras gramaticais que compõem o discurso e estará de posse de uma nova teoria cujos contornos poderão ser ajustados ao mundo através da observação e da experimentação. Novos conceitos, se convenientemente tratados, podem constituir sementes, ou embriões de mundos. Nossa própria mente funcionará como um ambiente fértil provendo toda a ecologia necessária para o desenvolvimento de tais germes, que, em circunstâncias adequadas, se desenvolverão por si próprios, em nossas mentes.

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Quando lhe faltar palavra que corresponda a determinada ideia, defina-a tão precisamente quanto conseguir, e, tendo feito isso, dê um nome a ela. De posse de alguns conceitos originais assim constituídos e aparentados, pertencentes a uma mesma área, perceberá como eles se relacionam e interagem, por si, e quase autonomamente, gerando teorias originais quase autonomamente.

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Esse texto consiste na primeira experimentação consciente de engenharia filosófica, e consiste em uma ilustração de si mesmo.