Cristão, mundo e política

A temática é difícil e espinhosa. Comporta múltiplas leituras. No entanto, nessa abordagem procuramos indicar alguns dos problemas que dela emergem, a saber: o conflito, para um cristão, da sua dupla cidadania. Por um lado, no mundo; por outro, contra o mundo. O problema também se estende à política, na relação institucional histórica que há entre a Cidade de Deus e a cidade dos homens.

1. A pergunta

Seria lícito ao cristão, enquanto tal, intervir para mudar o mundo por meio da política?

2. Peregrino no mundo

“Sou peregrino na terra”, confessa o salmista em reconhecimento a Deus (119:19). Eis posta a primeira característica de um cristão: o estranhamento ao mundo pela sua condição peregrina. Seu objetivo encontra-se alhures: é cidadão dos céus (1 Pedro 2:11). Está no mundo, embora não seja dele (João 17:14).

Peregrino é quem está de passagem, quem ainda não tem raízes numa terra estranha, é a diferença, a não conformidade às crenças, usos e costumes de um povo, um estrangeiro. Ademais, ao cristão acrescenta-se o reconhecimento da transitoriedade das coisas e da falta de esperança em um horizonte onde não houvesse Deus: "Porque somos estrangeiros diante de ti, e peregrinos como todos os nossos pais; como a sombra são os nossos dias sobre a terra, e sem ti não há esperança." (1Cr 29:15).

Em sua peregrinação vai adquirindo maturidade na fé, passando a reconhecer que o mundo está repleto de armadilhas; adquire clara apercepção de que aqueles que jazem no mundo possuem objetivos distintos. Embora saiba que ambos procuram a beatitude, o fazem por caminhos diversos.

Ao não reconhecer nesse mundo sua paragem definitiva, não deveria deitar nele raízes, não se permitir conformar, mas procurar ser transformado pela renovação do entendimento (Romanos 12:2).

3. Mudar o mundo?

Não obstante ciente de sua condição peregrina, por via de regra a condição cristã está enraizada em sistemas institucionais de crenças que exercem forte influência sobre a formação dos juízos e condutas, as quais terminam por influir na forma como o cristão lida com o mundo.

Dentre as crenças institucionais arraigadas na história do cristianismo está a de transformar o mundo, instaurando nele o Reino de Deus por meio de instituições políticas. Essa crença é reiterada ao longo da história mundana do cristianismo e pode ser facilmente averiguada, não obstante a história ensinar que as consequências são desastrosas para ambas as partes, ao cristianismo e ao mundo. Portanto, quando um cristão envereda pelo mundo com a crença arraigada de mudá-lo, assemelha-se a um ingênuo, embora ciente do seu projeto. A sabedoria que rege o mundo é distinta da sabedoria celeste. Sair ao mundo apregoando as coisas dos céus como fossem mercadoria equivale a lançar pérolas aos porcos, dar coisas santas aos cães (Mateus 7:6).

Quem está ocupado com o mundo é do mundo e dele recebe orientação para dirigir a própria vida. Em contrário, quem é de Cristo vive a firme expectativa do Seu imediato retorno, sua "parousia": "Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do homem há de vir." (Mateus 25:13).

4. Cristianizar o mundo pela política?

Disse Jesus: “buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça” (Mateus 6:33). Sob a ótica espiritual, causa estranheza uma pessoa, na qualidade de cristã, imiscuir-se na política e nas coisas do mundo com o argumento de o cristianizar. Essa presunção é vã, esforço inútil. Não funcionou, funciona ou funcionará: “o meu reino não é deste mundo”, foi a resposta de Jesus a Pilatos (João 18:36). A resposta, contudo, não significa que Cristo não tenha interesse nas pessoas do mundo. Ao contrário, ele veio ao mundo para oferecer a salvação e resgatar os que estão no mundo. Fosse o contrário não teria sentido a encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo, que veio anunciar o Reino de Deus e juntar os seus por meio do seu ato expiatório. Não por outro motivo exortou Paulo, na epístola aos Colossenses: "estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus" (3:3).

Quem vive o mundo com a pálida escusa de o mudar termina na conformidade, tornando-se um morno: um pé lá, outro cá, procurando conciliar os interesses do Reino de Deus ao mundo e vice versa. Sob a ótica bíblica o morno serve para ser vomitado (Apocalipse 3:15-16). Pela influência do mundo o cristão acaba por relativizar as palavras do Evangelho e a salvação expiatória oferecida por meio de Jesus, o Cristo de Deus, arrefecendo sua fé e a de outros que estão no caminho, retirando o sal das palavras do Cristo, tornando sua mensagem insossa, sem efeito prático, caindo numa religiosidade formal, ritualista, seguindo preceitos meramente protocolares. Enfim, vivendo a vida de um cristão meramente nominal: "tens nome de que vives, e estás morto." (Apocalipse 3:1). Quem se conforma ao mundo termina por submeter-se a dois senhorios com exigências distintas. Jesus advertiu seus discípulos para esse perigo: "Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro" (Mateus 6:24).

Ademais, há outro ponto que um cristão deveria ponderar: o mundo está condenado, há um termo para ele. Acrescente, ao que crê na Sagrada Escritura como Palavra de Deus, forte advertência: "não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus." (Tiago 4:4)

5. O cuidado da fé

Se admitidos os pontos anteriores, seria prudente ao cristão cuidar da sua fé, estar de joelho, em comunhão, orando incessantemente, lutando contra as forças do mundo; todavia, não contra os que estão no mundo, pois foi para eles que veio Jesus Cristo. Aos discípulos do Cristo cabe estender a mão ao próximo, amando-o não em palavras, mas em ato, qual o samaritano movido por “íntima compaixão” cuidou das feridas daquele que, descendo de Jerusalém a Jericó, caiu em mãos de salteadores (Lucas 10:30-35). Deve viver o Evangelho que não é uma teoria a ser estudada e debatida, mas é a fonte de Vida pela qual dia a dia o cristão vai conformando sua vida nos passos de Jesus Cristo. As boas novas do Reino de Deus à humanidade por meio de Jesus Cristo, "o bem-aventurado, e único poderoso SENHOR, Rei dos reis e Senhor dos senhores" (1 Timóteo 6:15).

Noutras palavras, o Evangelho é a boa nova do Reino de Deus, não do reino de César. Portanto, viver no mundo como não fosse do mundo é o sinal de um cristão: "Não ameis o mundo, nem o que no mundo há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele" (1 João 2:15).

6. Tentação à política

Em que pesem amargas lições, infelizmente há um fato consagrado ao longo da história humana: a tentação à política por meio da religião é antiga e está na base da civilização cristã. Gregos, judeus e romanos foram religiosos. Nesses contextos, sempre que uma voz emergia dissonante quanto ao intercâmbio entre céus e terra, era exemplarmente silenciada: Sócrates e Jesus foram condenados, por meio da política, à morte; Sócrates por ter questionado a crença dos atenienses; Jesus por terem-no visto como um herege em relação ao judaísmo normativo. Noutros termos, ambos acusados de corromper os costumes e a religião oficial. Além desses exemplos paradigmáticos, muitos outros poderiam ser elencados. Não apenas indivíduos, mas civilizações inteiras foram e continuam a ser dizimadas em nome de Deus e do Cristo, por meio da aliança entre política e religião.

7. Cidadão de Roma

Embora peregrino no mundo e cidadão do céu, o agente cristão é, igualmente, cidadão de Roma. É com esse status que adentra a vida da urbes em conformidade às regras políticas. Na cidade dos homens, o cristão deveria usar a ética e o direito como instrumentos para balizar suas reflexões e formar seus juízos, deveria ser capaz de formular questões pertinentes sob o ponto de vista humano; noutros termos, ser esclarecido e autônomo. Isso implica intervir na esfera pública sem usar a Bíblia como livro político, porquanto a Bíblia é Palavra de Deus aos seus comensais, aos domésticos na fé, embora nela esteja contida a economia da salvação oferecida ao ser humano. Por essa razão, é escassa sabedoria e imprudência um cristão utilizar a Bíblia e os princípios de sua fé como instrumentos políticos. Ademais, caberia aqui uma advertência: é de farto e notório conhecimento que a Bíblia enquanto instrumento, e pela letra, contém inúmeras contradições sob a ótica humana estritamente racional, sobremaneira numa época em que o espaço público exige o respeito e a tolerância com as alteridades. Como cidadão de Roma o cristão tem os mesmos direitos e obrigações; ele deveria ter ciência que os mesmos princípios normativos são aplicados a todos, indistintamente. Não por outro motivo, a postura de presunção de inúmeros cristãos apenas alimenta a desconfiança e o repúdio dos não cristãos, acirrando ânimos e conturbando a paz na urbe.

Noutras palavras, enquanto cidadão romano, o cristão tem o dever em se ocupar da cidade dos homens, na qual as disputas políticas devem ser travadas entre homens livres e iguais, como cidadãos do mundo e com as regras do jogo de uma República. Por conseguinte, pela via estritamente política, ser cristão não é prerrogativa ou sinal de distinção na pluralidade constitutiva da urbe.

Portanto, no âmbito da esfera política seria prudência o cristão usar a prerrogativa de sua dupla cidadania, sabendo que as coisas de Deus por ele recebem cuidado por meio de suas ações enquanto escravo do Senhor Deus.

8. Cristianismo e esfera pública

Como mencionado anteriormente, a condição cristã deita raízes no cristianismo institucional. Enquanto instituição, o cristianismo tem presença no espaço público, deve zelar pelos seus interesses, sua concepção de justiça e lutar pela garantia da sua permanência por meio da liberdade religiosa e de culto. Todavia, no espaço público o cristianismo é um sistema de crenças em meio a inúmeros outros, como ateus, agnósticos, budistas, judeus, espíritas, new age etc. Seus princípios não se sobrepõem a outros, sejam eles religiosos ou não, porquanto o espaço público é a esfera que deve acolher, com equidade, a diversidade e zelar para que os conflitos daí advindos não a destruam ou que os grupos divergentes se destruam mutuamente. Reforçando, Roma lida com a diversidade, é uma República na qual nenhum grupo, religioso ou não, tem acesso privilegiado a uma verdade transcende que possa sobrepor-se a outras; ao contrário, no espaço da esfera pública um horizonte da verdade deve ser tecido por meio das disputas advindas das múltiplas concepções de bem, conflitantes entre si, emergindo um consenso sobreposto a partir dos conflitos das partes envolvidas.

Como ilustração, no livro dos Atos dos Apóstolos encontramos um caso interessante a indicar como os conflitos envolvendo religião eram tratados – caso, obviamente, que não ia de encontro à "Pax Romana". No relato, o apóstolo Paulo estava em missão na cidade de Corinto. Todos os sábados ia disputar com os judeus na sinagoga, procurando convencer gregos e judeus a Jesus Cristo, permanecendo ali um ano e seis meses. Certa feita os judeus, concordemente, o agarraram e o levaram ao tribunal, ante Gálio, procônsul da Acaia, com a seguinte acusação: “persuade os homens a servir a Deus contra a lei” (Atos 18:13). Em resposta, Gaio os expulsou de sua presença com as seguintes palavras: “se a questão é de palavras, e de nomes, e da lei que entre vós há, vede-o vós mesmos; porque eu não quero ser juiz dessas coisas.” (Atos 18:15-16). A negativa de Gaio ao provimento do caso foi porque o mesmo não envolvia a violação da lei romana, que garantia a pluralidade de culto. No entanto, se ele compreendesse o “ir contra a lei” no sentido de questionar as leis romanas, Paulo seria julgado e, possivelmente, condenado, como ocorreu posteriormente. Quando conflitos eclodiam por meio de movimentos que perturbavam a "PAX", Roma agia de maneira exemplar, como o fez quando destruiu Jerusalém.

9. Cidade de Deus

Uma das consequências mais visíveis do intercâmbio entre a política e religião institucionalizada pode ser encontrada na maneira pela qual os cristãos projetam ao Reino de Deus uma perspectiva estranha a ele. Não é incomum cristãos acreditarem que o Reino de Deus possui equivalência na política secular. Chegam, inclusive, a defender uma democracia baseada “nos céus”. Nada mais equivocado. No que tange à Cidade de Deus, o cristão deve ter clara apercepção de que não se trata de uma república, muito menos uma democracia, mas uma teocracia pura conduzida pela soberania absoluta do Senhor Deus e do Senhor Jesus Cristo, a quem foi outorgado todo poder, honra e glória por toda a eternidade. Logo, na perspectiva bíblica, um cristão tem o status de escravo do Senhor Deus e do Senhor e Salvador, Jesus Cristo. Escravo é um estado no qual alguém é totalmente controlado por outrem, é estar sujeito, é a não liberdade, quando entendida no contexto mundano.

Encerro esse pequeno ensaio com as palavras de Paulo, "Porque nenhum de nós vive para si, e nenhum morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De sorte que, ou vivamos ou morramos, somos do Senhor." (Romanos 14:7-8).

Osvaldino Marra Rodrigues