Duas versões da matriz, e uma terceira

Na primeira metade do séc. XVII, Descartes imaginou a fantasia de um gênio maligno, desses que saem de lâmpadas, que se divertia em nos iludir, criando para nós uma espécie de teatro mágico, uma fantasia desconectada da realidade, uma ilusão que acreditamos ser o mundo real mas que, de fato, corresponde a uma criação da criatura sarcástica. A criação de Descartes teve, durante séculos, um papel instrumental, funcionando como uma ferramenta para o reforço de certas conclusões. O filme Matrix popularizou uma versão mais forte do argumento, transformando-o, de mero instrumento, em conjetura plausível, defendida, hoje, por quantidade crescente de pessoas. (Meritório também o reconhecimento a Philip K. Dick sobre o tema).

Existem, ao menos, duas versões distintas da matriz, possivelmente uma infinidade delas. A primeira consiste naquela explicitada no filme Matrix, na qual a mente de uma pessoa encarna em um computador para viver, nele, uma realidade virtual. Nessa versão nossa vida consiste em uma espécie de vídeo game, em uma simulação da realidade que talvez possa ser recarregada por certo número de vezes.

Na segunda versão, somos programas. Talvez reconstruções de seres existentes anteriormente, mas programas vivendo em um ambiente computacional, talvez dentro de um computador de outra ordem, dentro de outro...

Interessante será a construção de versões adicionais, desdobradas das anteriores, e em quantidade talvez limitada apenas por nossa própria inteligência.

Agrada-me uma versão semitotal na qual uma mesma alma perpassa todos os corpos em interação em um dado mundo. Eu sou você, sou ele, ela; todas as pessoas existentes acabam sendo, em dado momento, acessados por uma mesma alma. Somos apenas um, sendo o mundo um grande teatro no qual cada pessoa existente corresponde a uma janela através da qual o eu, ou alma única, vivencia sucessivamente o memorável espetáculo.