MAÇONARIA- UMA VOLTA ÁS ORIGENS
 
A função dos “Mistérios”
 
Os antigos gregos eram, sabidamente, um povo de grande potencialidade espiritual. Vivendo em um território extremamente pobre em recursos naturais, como ainda hoje é a Grécia, eles construíram um fantástico império cultural, cuja influência se faz sentir até hoje. Essa grandeza cultural não estava presente apenas nas instituições políticas e sociais que servem de alicerces para as nações modernas, mas principalmente na estrutura arquetípica que dava fundamento ao psiquismo do povo grego. Essa psicologia transparecia em seus mitos, seus heróis, seu folclore e suas crenças, os quais refletiam o caráter místico e iniciático dessa cultura, e lhes dava suporte psicológico e moral para superar as dificuldades que um ambiente hostil e deficiente em recursos naturais lhes impunha.
Toda tradição esotérica está vinculada ao mito dos heróis. A própria palavra “herói” significa guardião, ou seja, aquele que nasceu para servir e conservar (a tradição).[1] Por isso as provas enfrentadas nos chamados Mistérios eram verdadeiros desafios, nos quais o iniciando precisava sair vivo para dar mostras de que era merecedor do beneplácito divino. Daí todas as histórias a respeito dos heróis, em qualquer tradição, estar sempre ligados á lugares comuns como cavernas ou grutas escuras (câmaras de reflexão), combates contra monstros (símbolos dos vícios humanos), passagem pela água, pelo fogo, descidas ao interior da terra e jornadas pelos elementos em fúria (como se observa no ritual de iniciação da Maçonaria).[2]
download (62).jpgOs gregos entendiam que a verdadeira iniciação, a entrada sistemática e natural no Éden, (figurado pelo Jardim das Hespérides) era o ingresso do homem no próprio seio da natureza. E essa ação não ofendia aos deuses e não atraia nenhum castigo sobre aquele que a praticava, como visto na doutrina judaico-cristã. Para eles, esse domínio do homem sobre a natureza era mesmo uma imposição da sua própria função na sua aventura sobre o Cosmo. O homem, um dia, saiu do Éden e a ele deve voltar. Isso quer dizer que ele pertence á natureza e dela não pode dissociar-se. Só não pode assaltá-la, nem violá-la para nela reingressar. Nem deve esperar que ela lhe revele seus mistérios á força. E mesmo que venha a ter sucesso dessa forma, essa vitória nunca será duradoura. Como aconteceu, por exemplo, a Hércules e ao rei Eristeu, que roubaram os pomos dourados do Jardim das Hispérides. Os pomos roubados tiveram que ser devolvidos aos deuses porque seus possuidores não souberam o que fazer com eles. Assim é. A “sabedoria”, ou qualquer outro bem conquistado á força, ou por meios criminosos, sempre acaba destruindo seus possuidores. Lição que nossos políticos não aprenderam até hoje.
 
A razão do silêncio
 
Nessa alegoria há também uma clara condenação aos poderosos que se utilizam de “iniciados”, de mestres, para atingir seus propósitos profanos de aquisição de poder. Por isso, na tradição hermética, sempre se aconselha aos “filhos da ciência”, aos mestres, aos iniciados, que se afastem do poder político, e que não se deixem usar pelos poderosos de plantão. Essa é uma das razões do silêncio exigido pelas sociedades iniciáticas. Seus segredos, seus mistérios, seus conhecimentos não devem ser utilizados com fins profanos.
Na Maçonaria, a aquisição do conhecimento tem finalidades éticas e espirituais. Trata-se, em última análise, de promover o aprimoramento do indivíduo para que ele seja a pedra angular do edifício social e não o artífice de um poder temporal, que nada edifica de bom e duradouro, mas serve somente como alavanca para a promoção de interesses e vaidades pessoais. Essa é a razão do silêncio imposto sobre os membros da Irmandade com relação á tudo que se é tratado em Loja. Não tem nada a ver com conspiração ou heresias. Trata-se apenas de sigilo de informação.
 
O significado da iniciação
 
Os gregos entendiam que a vida de um iniciado era, por si só, constituída de hercúleas tarefas, que deviam ser cumpridas independentemente dos resultados. Para eles, o iniciado, e queremos com isso nos referir ao próprio maçom, era um arquétipo do herói necessário, que nasce para realizar feitos importantes para a vida comunal. Ele entra na história, realiza seu trabalho sem perguntar por que o está realizando, faz o que tem que fazer, e sai de cena sem esperar pelas homenagens.[3]
Ele sabe que é muito mais importante o momento de sair do que o de entrar. Os que esperam receber homenagens, agradecimentos, troféus pelo cumprimento das suas obrigações, ganham exatamente aquilo que vieram buscar: as honras momentâneas, os agradecimentos de praxe, as congratulações de momento, que serão imediatamente esquecidas assim que eles virarem as costas. Como deles disse Jesus, “esses já receberam sua recompensa”. Mas o verdadeiro herói, aquele que cumpriu a sua obrigação e foi embora procurar outros lugares e outras pessoas que precisam dele, sem esperar pelas homenagens, esse sobrevive para sempre no ideário popular. Assim era o herói das lendas gregas, e por isso ele sobrevive, até hoje, no imaginário popular. Por isso, em todas as etapas de realização dos chamados Mistérios de Elêusis, eram destacadas aos iniciandos as disposições que garantiam a privacidade dessas iniciações e o caráter sagrado que a elas eram conferidos. Por isso era encarecido a eles, sob pena de exílio, ou até mesmo de morte, que as seguintes disposições fossem observadas, lembrando que essas disposições foram adotadas pelos códigos maçônicos atualmente em voga.
 
  • 1. Manter sigilo sobre o local da iniciação, nem revelar os segredos a ele revelados a quem não for da mesma ordem e grau, ou os nomes das pessoas que lhe comunicaram esses segredos. Nesse compromisso estava o respeito á discrição exigida em toda tradição iniciática, que já foi comentada acima como necessidade imperiosa da própria atividade.[4]
    2. Esforçar-se para contribuir na formação de uma sociedade justa, humana e igualitária, e primar pelo comportamento digno nas atividades públicas e privadas. Nessa disposição estava patente a clara disposição do iniciado em vencer suas paixões, abstendo-se de usar a Irmandade e os segredos que lhe foram confiados para a obtenção de vantagens pessoais.
    3. Manter respeito á família, as leis e aos bons costumes, o que implica na prática de um comportamento social, familiar e sexual compatíveis com a condição de iniciado.
    4. Não reconhecer outro guia que não a Razão e o Espírito de Justiça, que significa que o comportamento do iniciado deve ser sempre sensato, equilibrado, racional, jamais impensado, irresponsável e inconseqüente, pois isso é incompatível com a prática iniciática.
    5. Procurar realizar o progresso pessoal e coletivo num estado de ordem, lembrando sempre que o primeiro não é possível sem o segundo. (Essa divisa, que inclusive foi adotada no Pavilhão Nacional do Brasil por influência da Maçonaria, é um imperativo do próprio processo de desenvolvimento do individuo e da coletividade, seja como organismo biológico, seja como realidade social. No organismo biológico, a saúde é um estado de ordem em que todos os sistemas que compõem o corpo humano estão em harmonia; na sociedade ela reflete a sua organização geral, razão pela qual, sem que essa ordem seja alcançada, nada pode ser realizado em termos de progresso; da mesma forma, as sociedades onde imperam a desordem, a desarmonia, as lutas internas e externas, jamais poderão realizar um progresso adequado. Por isso um dos lemas fundamentais da Maçonaria é realizar a “Ordo ab Chaos”, a Ordem no Caos.)
    6. Buscar nos relacionamentos humanos aqueles que forem honrados, virtuosos, francos e produtivos, capazes de realizar o progresso mútuo e o enriquecimento ontológico dos espíritos neles envolvidos
    7. Não buscar deliberadamente os cargos, as comendas, os títulos, as distinções, pois o propósito de todo iniciado é o serviço desinteressado, a construção do império da virtude e da Justiça. Nesse sentido o iniciado deve viver de acordo com uma Ética e uma Moral voltadas á realização integral do homem como criatura temente aos deuses, como uma obrigação dele mesmo, como individuo, e não como uma façanha que mereça encômios.
    8. Buscar a sabedoria como forma de entender o mundo e ajudar a realizar a tarefa dos deuses na construção de um universo perfeito. (nesse sentido é bom lembrar que o termo Grande Arquiteto do Universo foi cunhado por Platão, que entendia ser o mundo traçado por Deus como arquiteto e construído pelos homens como seus pedreiros).  Isso implica numa atitude não somente racional perante a vida, mas também de crença ilimitada no Princípio Soberano do qual emana tudo que existe no Cosmo. Significa que o iniciado, a par da racionalidade que deve procurar imprimir nas suas atitudes, tem que manter uma relação mística de admiração e respeito pelos mistérios da natureza e pela magnificência do seu Criador. Com isso, jamais correrá o risco de ser, como bem lembrou Anderson, “um ateu estúpido nem um libertino religioso”. Jamais se esquivará, também, de sempre buscar o auxilio de Deus, o que, sem dúvida, nunca lhe será negado.
 
                 Os Antigos Mistérios e a Maçonaria moderna
 
É para isso que serve a prática iniciática, e essa é também a função da verdadeira fé. Os iniciados devem estar dispostos a arrostar mesmo os perigos do inferno quando se tratar de socorrer, de resgatar seus irmãos que estiverem lá acorrentados e que por suas próprias forças não conseguem se libertar. E não pode temer os monstros que encontrará, ou os perigos que terá que enfrentar, nem as dificuldades que terá que superar. E como o herói das lendas gregas, muitas vezes terá que conviver com a decepção de ter que devolver aos infernos os troféus que de lá resgatou. É que o destino das pessoas e o controle dos acontecimentos não estão, na verdade, nas mãos dos homens, mas pertence unicamente ao Grande Arquiteto do Universo. Mas, ainda assim, o herói, como o maçom, jamais poderá furtar-se de cumprir sua missão, pois para essa tarefa foi escolhido, para isso foi submetido a uma iniciação.
Um grande erro que algumas download (63).jpgLojas maçônicas têm cometido, em nossa opinião, é o fato de que, para atender a objetivos simplesmente profanos, como o são os interesses pessoais de seus membros, essas Lojas têm admitido em seus quadros pessoas não qualificadas para perseguirem os objetivos da Ordem.
Essas pessoas entram para a Maçonaria, mas jamais alcançam, ainda que subindo todos os graus da Escada de Jacó, os verdadeiros objetivos da Irmandade. É que a Verdade da Maçonaria não está nos rituais, mas na prática diária dos seus ensinamentos. Desde que Anderson e seu grupo empreenderam a tarefa de transformação da antiga Maçonaria especulativa, simbólica e iniciática, numa sociedade formal, com o objetivo, a nosso ver, exotérico, qual seja, o de integrar os mistérios das antigas religiões com a filosofia iluminista e sua idéia de progresso, a poderosa corrente de pensamento que fluía de seus quadros começou a ser conspurcada por objetivos meramente profanos e ideológicos. A Maçonaria moderna deixou as Lojas de Companheiros, onde congregava “obreiros úteis e dedicados”, para ganhar os salões luxuosos da nobreza, onde a cortesia e a sensibilidade dos “homens de espírito esclarecido, costumes morigerados e humor agradável”, foi confundido com a galanteria concupiscente dos cortesãos. É a essa “Maçonaria de salão” que a Rainha Maria Antonieta, e também Napoleão Bonaparte, se referiram em seus desdenhosos comentários.[5]
Nos tempos atuais a situação não parece diferente. A própria oração de encerramento dos trabalhos da Loja simbólica, quando se pede ao Grande Arquiteto do Universo para que “enriqueça as colunas” da Ordem com obreiros úteis e dedicados não tem sido atendido devidamente pelos próprios membros da Confraria, que cooptam pessoas mais por amizade pessoal, interesse social, financeiro ou político, fazendo de algumas Lojas mais um clube de lazer, ou um partido político, do que propriamente uma sociedade de pensamento, destinada a promover a construção moral do individuo e o aprimoramento ético da sociedade.
Não é demais lembrar que clubes de serviço, tais como os Lions e Rotarys foram fundados no seio da Maçonaria, para servirem de “braços sociais” da Ordem em seus objetivos filantrópicos. Dessa forma não vemos por que a Maçonaria, enquanto sociedade de caráter iniciático, deveria praticar filantropia. Aos maçons que propugnam por uma maior atividade dos irmãos nesse sentido, sugerimos que entrem para um desses clubes de serviço, cuja competência nesse setor já foi sobejamente demonstrada. A nós se afigura que a Maçonaria deveria voltar ás suas velhas origens, atuando como sociedade formadora de caráter e treinamento de lideranças. Nesse sentido, sua função seria a de pesquisar todas as tendências do espírito moderno e ofertar á sociedade, além da uma crítica judiciosa, ponderada e isenta de qualquer preconceito, também um conjunto de ações tendentes a influir, de forma decisiva no processo social. Nesse sentido as Lojas atuariam como verdadeiros“ filtros” onde o pensamento seria purificado dos males que o vício, a intolerância, a cupidez, a ambição desmedida e a imoralidade acarreta aos nossos espíritos.
Essa era a função dos Mistérios nas sociedades antigas, como bem disse o senador romano Cícero, iniciado nos Mistérios de Elêusis. “Muito do que é excelente e divino faz com que Atenas tenha produzido e acrescentado ás nossas vidas, mas nada melhor do que aqueles Mistérios, pelos quais somos formados e moldados partindo de um estado de humanidade rude e selvagem. Nos Mistérios, nós percebemos os princípios reais da vida e aprendemos a viver de maneira feliz, mas principalmente a morrer com uma esperança mais justa” escreveu o grande orador.[6]
 
                         Uma volta ás origens
 
       Essa foi a razão que norteou os fundamentos da Maçonaria moderna, e que deveria ser recuperada pelos Irmãos de hoje. Pois a não ser assim estaremos perdendo uma idéia que tem sido desenvolvida ao longo dos séculos e pela quais muitas vidas e consciências já foram sacrificadas. É preciso pensar em melhorar a qualidade dos Obreiros da Arte Real e não simplesmente aumentar o seu número. Nisso, como em toda prática iniciática, é de bom alvitre relembrar a velha lição: o verdadeiro conhecimento, quando é compartilhado com pessoas indignas dele, se abastarda e se corrompe. Sendo fato histórico torna-se mito sem conteúdo; se filosofia ou ciência, torna-se rito vazio e sem propósito, praticado apenas como uma grosseira imitação da verdade.
É preciso recuperar as nossas origens. Aos maçons de espírito esclarecido cabe observar esse fato. Embora não exista hoje, qualquer mistério na Maçonaria oficial, e mesmo que a antiga tradição tenha sido enfraquecida pela inclusão, nos rituais, de diversos temas mais apropriados ás salas de aula de uma universidade qualquer, é ainda nas Lojas maçônicas que poderemos encontrar o velho espírito das sociedades secretas e sua aura de misticismo, que ainda funciona como um poderoso emulador para os espíritos mais sensíveis. É preciso que esse clima não se perca com disputas mesquinhas e proposituras mais apropriadas aos objetivos de agremiações políticas de baixa envergadura e escusos objetivos, mas não à Maçonaria propriamente dita.
 
[1] Do latim servare (conservar).
[2] É nesse sentido que a Ilíada, a Odisséia, a Eneida, as Metamorfoses, a Divina Comédia, as lendas de Ísis e Osíris, a saga de Moisés e os hebreus no Êxodo, por exemplo, são jornadas iniciáticas por excelência. Todas apresentam esses elementos em comum: a passagem pela água e pelo fogo, o enfrentamento com os elementos naturais, a luta contra monstros e gigantes, etc. Essa é a saga do herói, do eleito de Deus...
[3] Segundo Junito de Oliveira Brandão- Mitologia Grega, III volume, Ed. Vozes, São Paulo, 1998, a função da iniciação, para o herói grego, é adquirir as virtudes da timé (honorabilidade pessoal) e da areté (excelência pessoal, superioridade. Por isso todos os heróis devem ter uma formação iniciática, período em que ele se ausenta de casa para romper com a antiga vida profana e adquirir a nova personalidade.
[4] Essa exigência de segredo vem dos Mistérios Antigos, especialmente os Mistérios de Elêusis. A proibição de revelá-los a quem não fosse iniciado fazia parte do ordenamento legal da República de Atenas. Consta-se que o general Alcebíades, herói das guerras com a Pérsia, foi desterrado por ter revelado a um profano uma parte desses Mistérios.
[5] Maria Antonieta, segundo diz Ambelain, teria comentado com sua mãe, a Imperatriz da Áustria, que na França todo mundo era maçom, denotando, com isso, que a Arte Real, nos anos que antecederam a Revolução Francesa, havia sido popularizada de tal forma que não poderia ser levada a sério. Por isso mesmo é que Napoleão, conforme diz Jean Palou, também se referira aos maçons como “pessoas que gostam de brincar” de cavaleiros.
[6] Dudley Wright- Os Ritos e Mistérios de Elêusis, Madras- São Paulo, pg. pg. 24.