A INDIFERENÇA DO MODERNISTA

A INDIFERENÇA DO MODERNISTA

O escritor modernista, José Lins do Rego nasceu em Pilar, na Paraíba, em 1901 e faleceu no Rio de Janeiro em 1957. Sua obra de ficção é de fundo memorialista, caracterizando-se pela reconstrução do mundo em que nasceu e se criou, através das histórias que ouviu na infância e a tradição de que foi testemunha.As obras do autor, em sua maioria, são narrativas que nascem de problemas gerados por um sistema patriarcal, escravocrata e latifundiário em decadência, dando origem ao romance nordestino do ciclo da cana -de- açúcar. Obras como: Menino de engenho, Doidinho, Bangüê, Usina e Fogo Morto, têm como temática o início da decadência do engenho latifundiário, com o advento da usina, contrapondo o homem como senhor de engenho, patriarca, junto a seu clã, à massa explorada e humilhada dos trabalhadores braçais.

Particularmente, a obra “Menino de Engenho” tem como cenário o interior paraibano, a fazenda Santa Rosa e o engenho de açúcar, onde o menino Carlinhos, aos quatro anos, após a morte da mãe e a loucura do pai, vai viver na fazenda do avô materno, José Paulino. A adaptação de Carlinhos e suas sucessivas perdas afetivas estão presentes ao longo da narrativa, através da descrição do meio e a influência da cultura patriarcal e escravocrata, fazendo parte da infância do menino. A cultura e a estrutura do engenho estão centrados na economia açucareira em declínio, cuja ferramenta básica é a mão de obra escrava, que fomenta e enriquece uma elite inescrupulosa e autoritária. Negros e negras compõem a estrutura produtiva, onde a exploração do trabalho escravo retrata um painel econômico e social de uma época em que o senhor do engenho representa o poder econômico, o latifúndio e a exploração do trabalho braçal dos escravos. A narrativa desnuda com naturalidade a exploração econômica e sexual, particularmente, das escravas negras no contexto do engenho de açúcar, onde além de representarem as forças que moviam a cadeia produtiva, serviam de instrumento de satisfação sexual aos senhores de engenho.

Nas memórias narradas pelo autor, através de Carlinhos, transparecem a indiferença e a naturalidade, passando ao largo de uma visão crítica, ou de preocupação em relação à sociedade promíscua e sem limites que permeava as relações entre dominador e dominado. As escravas negras dominadas e exploradas pelo senhor do engenho, representam meros instrumentos de satisfação das taras e abusos do dominador senhor de engenho, como José Paulino, avô de Carlinhos.

Os relatos do narrador Carlinhos revelam a total ausência de censura, quanto à prática de dominação e abuso de poder econômico, transparecendo a naturalidade do exercício do autoritarismo nas relações entre dominador e dominado:

"Meu avô me levava sempre em suas visitas de corregedor às terras de seu engenho. Ia ver de perto os seus moradores, dar uma visita de senhor nos seus campos. O velho José Paulino gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões de seu povo, dar os seus gritos de chefe, ouvir queixas e implantar a ordem." (p.27)

As palavras de Carlinhos revelam o tratamento dos senhores de engenho, particularmente de seu avô, José Paulino, para com seus escravos.

O escritor modernista mostra-se indiferente e até solidário, ao poder exercido por seu avô, dono e senhor da propriedade onde tudo estava sob seu domínio. A visão sobre o patriarca em seu paternalismo centralizador, é justificado pelo neto como garantia de produtividade e bom andamento do engenho como fonte de lucro e renda, excluindo a classe trabalhadora do banquete, restando-lhes o mínimo necessário à sobrevivência.

"Restava ainda a senzala dos tempos de cativeiro.Uns vinte quartos com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no engenho, não deixaram a “rua”, como elas chamavam a senzala. E ali foram morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda, Generosa, Galdina e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes de comer e de vestir. E elas a trabalharem de graça, com a mesma alegria da escravidão. As suas filhas e netas iam-lhes sucedendo na servidão, com o mesmo amor à casa-grande e a mesma passividade de bons animais doméstico." (p.41)

A descrição feita por Carlinhos sobre a senzala e as negras, nos mostra uma visão da abrangência do poder de seu avô e do paternalismo exercido, onde as negras eram comparadas a animais domésticos. Mais intimamente ligadas à casa-grande, executando trabalhos domésticos que se perpetuavam geração após geração, sem remuneração, apenas com o mínimo para sobreviver, somente comer e vestir. Além da exploração econômica caracterizada na não remuneração, as escravas negras eram usadas como instrumento de satisfação sexual de seus senhores.

"Não conheci marido de nenhuma, e no entanto viviam de barriga enorme, perpetuando a espécie sem previdência e sem medo.” (p.41)

A exploração econômica seguida da exploração sexual das escravas negras, extrapolam os limites do poder econômico, configurando a perversão e as taras dos senhores de engenho,cujos ímpetos sexuais iam além da dominação do trabalho escravo, pois a ausência da moral e a concentração do poder patrocinavam a sexualidade desenfreada, cujo instrumento de satisfação era a escrava negra. Em “Casa Grande e Senzala” Freire comenta:

"Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O Brasil, entretanto parece ter-se sifilizado antes de haver civilizado. A contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro já viesse contaminado. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas."

A sifilização, a que se refere Freire, se configura na relação de tio Juca com as escravas negras, engravidando-as e disseminando a sífilis como uma espécie troféu de masculinidade e perpetuação de poder, transmitidas de geração à geração. A iniciação precoce do menino Carlinhos com a escrava Zefa Cajá, é relatada como um rito de passagem, que garante ao menino Carlinhos, apesar dos traços infantis, uma transformação aceita e necessária para a vida adulta.

"A doença-do-mundo me operara uma transformação. Via-me mais alguma coisa que um menino; e mesmo já me olhavam diferente. Já não tinha para mim as condescendências que se reservam às crianças. As negras faziam-me de homem.” (p.87)

A doença venérea que acomete o menino Carlinhos é um passaporte para fase adulta, denotando a inescrupulosa ignorância em relação a iniciação sexual de um homem. Há uma flagrante relação entre a perpetuação do poder e o exercício do autoritarismo vigente, simbolizado pela precocidade com que o menino se inicia sexualmente. A ausência de limites morais na sociedade dominada pelo senhor do engenho está intimamente ligada a herança de poder que a casa-grande exerce sobre a senzala.

A casa-grande do avô José Paulino é a estrutura que dita as regras que o poder econômico lhe confere, já, a senzala representa o elemento dominado e explorado que sustenta a supremacia econômica e amoral da sociedade colonial açucareira.

José Lins do Rego rememora com fidelidade, mas sem espanto, a bipolaridade social a que se restringia o latifúndio patriarcal do engenho de açúcar no período colonial brasileiro, permeado pela supremacia do instinto animalesco do senhor de engenho sobre tudo e todos.

Através do saudosismo ingênuo e conivente, o autor transmite uma ideologia conservadora e machista que chocam, pois, a indiferença e a normalidade com que a ausência de limites morais e a falta de escrúpulos são narradas, ofuscam a exploração econômica e sexual dos negros e negras do engenho. O caráter memorialista da obra “Menino de Engenho” explicita a total ausência de senso crítico pelo autor adulto e supostamente, intelectualizado, que faz parte de uma geração de autores engajados na denúncia das mazelas de uma sociedade doente e deformada pelo abuso do poder.

O modernismo brasileiro foi um movimento que se caracterizou por uma espécie de revolução cultural, fazendo da arte um instrumento de protesto contra as injustiças sociais e o conservadorismo, representando uma literatura de denúncias, com marcada preocupação social, que trouxe à luz o senso crítico apurado em relação as nossas origens, influenciadas e deformadas pelo cultura européia. Mas, em “Menino de Engenho”, o olhar do autor que rememora suas origens, através do menino Carlinhos, transparece ignorar as deformações da sociedade açucareira e sua total ausência de ética e de limites, através, da visão oligárquica do senhorzinho de engenho, suplantando o senso crítico e a mentalidade engajada do autor modernista, preocupado com seu tempo, a exemplo da geração de autores, da qual José Lins do Rego está incluído dentro da literatura brasileira.

Lislopes
Enviado por Lislopes em 10/08/2007
Código do texto: T601217