VIDAS SECAS: o limite do racional

Vidas Secas: o limite do racional

Graciliano Ramos,escritor alagoano, sem dúvida um dos maiores mestres da literatura brasileira da geração de 30. Conciso e econômico no desenvolvimento de sua temática, quase sempre rude e dolorosa: a seca e as situações sociais de opressão do homem pelo homem.

Na obra, “Vidas Secas”, Graciliano faz uma fusão dos mais diversos elementos que compõe o cenário catastrófico da seca nordestina: homem, paisagem, sentimento, bicho, terra, fome, seca, humilhação.A saga do homem nordestino e a sua luta pela sobrevivência, onde além do meio ambiente estéril, as relações humanas se esvaem no desamparo e na exploração da miséria. A miséria mental e material em que vive Fabiano e sua família são resultantes da opressão do homem e do poder público contra o próprio homem.

As relações compensatórias entre o homem e outros seres vivos, a manipulação da natureza como fonte de sobrevivência, onde o animal faz parte de uma cadeia hierárquica, da qual é um mero instrumento a serviço do humano e de sua suposta inteligência. Na obra de Graciliano Ramos tudo é uma coisa só, um elemento desencadeia o outro para que “Vidas Secas” em seu estilo narrativo conciso traduza a secura da realidade que retrata.

Este estudo sobre a obra Vidas Secas tem como objetivo analisar a relação conflitante entre o homem e a natureza, na inversão da racionalidade entre os personagens Fabiano e a cadela Baleia. Onde o homem Fabiano se animaliza, adquirindo na adversidade, características físicas e comportamentos animalescos, enquanto o bicho se humaniza, ganhando características e sentimentos humanos.

A relação de poder do homem com a natureza, especificamente entre Fabiano e o animal de estimação, nos instiga à reflexão do limite entre racionalidade e irracionalidade na história da evolução da raça humana. Segundo Nietzche em sua obra, “A Gaia Ciência”:

“ Quer considere os homens com bondade ou malevolência, encontro-os sempre, a todos e a cada um em particular, empenhados na mesma tarefa: tornar-se úteis à conservação da espécie. E isto não por amor à espécie, mas simplesmente porque não há neles nada mais antigo, mais poderoso, mais impiedoso e mais invencível do que esse instinto... porque esse instinto é propriamente a essência da nossa espécie, do nosso rebanho.”

A decisão de Fabiano em eliminar a cadela Baleia para evitar o contágio da doença da qual está acometida, é a luta pela preservação da espécie. O animal de estimação era considerado um membro da família, havia entre a cadela e a família de Fabiano uma relação afetiva e útil, que não foi considerada em momento algum. O homem mata o animal para sobreviver, enquanto as condições de miséria e hostilidade do meio persistiriam como ameaças maiores à vida de todos.

A incapacidade de Fabiano para alterar o meio ambiente ameaçador, fez com que ele eliminasse o bicho, porque afinal, a cadela Baleia era a mais vulnerável ameaça passível de ser eliminada. Em momento algum, Fabiano pondera sobre a decisão de matar o animal de estimação.Nem considera a relação de afetividade da família com Baleia. Em matar e sobreviver há uma inversão de racionalidade que resgata através do animal sentimentos e ações inerentes aos humanos.

“Quando a cadela Baleia é ferida pelo dono “perdendo muito sangue, anda como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo” (P.88)

Baleia não só anda como gente, mas também incorpora sentimentos humanos, afetividade, fidelidade ao dono e solidariedade, mesmo ferida e agonizante pondera e perdoa.

“Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido.Não podia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarina, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.”(P.89)

A racionalidade, presente nos pensamentos do animal, transparece o afeto, a solidariedade e a compaixão, através de uma parceria fiel na miséria e no reconhecimento de obediência ao dono, mesmo na hora da morte.

A cadela Baleia faz um caminho inverso, pois, ao contrário de Fabiano, o animal incorpora sentimentos humanos; pensa, fala, ama.

O capítulo intitulado “Baleia”, em pé de igualdade com todo o resto do romance surpreende, porque resgata através do animal, sentimentos e ações que somente um ser dotado de inteligência e racionalidade manifestaria. Baleia não é como uma pessoa da família só porque brinca com as crianças, mas, porque sente como gente.

Quando a cadela é ferida pelo dono “perdendo muito sangue, anda como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo.”(P.88)

Baleia não só anda como gente, mas também incorpora sentimentos humanos, afetividade e fidelidade ao dono, mesmo ferida e agonizante.

“Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não podia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarina, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.”(p.89)

Vidas Secas nos remete à reflexão da relação do homem com a natureza, à disputa de poder que se estabelece, independentemente do contexto e da situação, e à supremacia da raça humana em relação aos outros animais.O homem, desde os primórdios de sua existência mata e destrói a natureza em nome de sua sobrevivência. A disputa de poder sobre a terra, dos recursos naturais e as ameaças à sobrevivência são argumentos vazios que servem para justificar as atrocidades humanas. Nietszche, em sua obra Genealogia Moral diz:

"Então veio ao mundo a maior e mais perigosa das doenças, o homem doente de si mesmo, foi conseqüência de um divórcio violento com o passado animal, de um salto para novas situações, para novas condições de existência, de uma declaração de guerra contra antigos instintos que antes constituíam a sua força e o seu temível carácter.”

O isolamento do homem no contexto inóspito e cruel faz com que Fabiano se identifique muito mais com os animais, enquanto estes lhe são úteis, adquirindo inclusive, características físicas que lhe possibilitem a adaptação ao meio. Há uma regressão ao irracional em Fabiano, exigida na luta pela sobrevivência. Os pés endurecidos para suportar os espinhos e o calor da terra, é uma espécie de adaptação ao meio.Confundir-se e conversar com o cavalo é uma interação necessária e compensatória ante o isolamento em que Fabiano vive.O cavalo é na verdade, um aliado na luta pela sobrevivência.

“Assim, Fabiano vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. Os seus pés duros de espinhos não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. Em pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio.”(P.19)

Ao não se agüentar mais de pé, o homem retoma sua condição de primata, voltando às origens e conseqüentemente ao ambiente primitivo em que viveram seus antepassados. Em Vidas Secas, o homem doente de si mesmo na iminência de retornar ao passado animal, retomando antigos instintos revela o visível processo de animalização pela perda da afetividade e pelo esvaziamento da linguagem. Onde o temível caráter e força se unem na atrocidade cometida contra o bicho de estimação.

Há de se refletir sobre as “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, a relação do homem com a natureza nos mais diversos contextos e situações, onde a racionalidade tem um limite diretamente proporcional à justificativa de sobrevivência da raça humana no planeta. Matar e sobreviver são atitudes limítrofes entre racionalidade e irracionalidade no ser humano. Fabiano mata para que ele e a família sobrevivam a um possível contágio pelo animal. Em contrapartida a cadela Baleia é um oásis de afetividade no deserto de amor e solidariedade que assola o homem e sua irracional relação com a natureza.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

RAMOS, G. Vidas Secas. 4ªed.São Paulo Record, 1982.

www.contracampo.com.br (15.27) 19/11/2005.

www.navedapalavra.com.br (15.30) 19/11/2005.

Lislopes
Enviado por Lislopes em 11/08/2007
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