etimologia da língua portuguesa 90nº

Etimologia da Língua Portuguesa por Deonísio da Silva Nº90.

Calcanhar, do latim calx e do espanhol calcanhar, parte posterior do pé, gerou palavras compostas expressivas. Uma, calcanhar-de- aquiles, designa ponto fraco. Outra, calcanhar-de-judas, indica área remota, onde o vento faz, a curva, ou o coisa-ruim perdeu as botas.

Azeviche: do árabe az-zabadj, glóbulos negros, designando a cor preta. Aparece com tal sentido logo na abertura de Assassinato na Academia Brasileira de Letras, romance de Jô Soares, quando o personagem identificado , como senador Belizário Bezerra, cinquentão, ao sair do chuveiro, contempla-se com orgulho no espelho da suíte do hotel onde mora, o Copacabana Palace, achando que a ginástica sueca que pratica todos os dias lhe dá a aparência de 10 anos menos: “Tinha a Convicção de que, além de seu barbeiro, ninguém notava que devia os cabelos negros como azeviche a Auréole, uma nova tinta inventada por Eugène Schueller, fundador da L’Oreal, que ele , comprava regularmente em Paris. Penteava-os para trás, imaculados, com brilhantina Yardley “. O romance do conhecido humorista tem lugar no Rio de Janeiro dos anos 20 do século passado. Ocupa-se das mortes de imortais da Academia Brasileira de Letras, reunidas por comissários e investigadores sob a rubrica policial Crimes do Penacho.

Calcanhar: do espanhol calcañar parte posterior do pé, também designado coice por influência do latim calce, declinação de calx, calcanhar, cujos registros iniciais datam do século XIII. Era, então, tal como o latim, sinônimo de talo, palavra mais tarde de uso mais frequente em botânica, designando base das plantas, ainda que funcione também como sinônimo de fio ou fiapo, e veio do grego thallós, que deu thallus, no latim, de cuja língua chegou ao português. Agricultores e pecuaristas levaram metáforas dos respectivos ofícios para outros campos semânticos do latim antigo, o que lhes permitiu conceder o talo como calcanhar das plantas, e o calcanhar dos homens semelhar o talo das plantas que cultivavam.

Calcanhar-de-judas: do espanhol calcañar com todas as influências do precedente, acrescidas do nome do apóstolo que traiu Jesus por 30 dinheiro. O nome próprio de Judas foi transformado em substantivo comum para, agregado a calcanhar, designar no português uma localização imprecisa ou remota, nos confins da região aludida, perto de onde o vento faz a curva, do lugar onde perdeu as botas o Diabo, que no ato da delação incentivara o traidor, utilizando como laranjas e testa-de-ferro os membros do sinédrio judaico. Pois as Escrituras deixam claro que havia na história da salvação o plano de utilização de agentes voluntários e involuntários.” Involuntários foram os sacerdotes que entregaram as moedas de prata, involuntária foi a plebe que elegeu Barrabás, involuntário foi o procurador da Judéia, involuntários foram os romanos que construíram a Cruz de Seu martírio e cravaram os cravos e lançaram sortes”, como escreve o argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) em A Seita dos Trintas , para acrescentar que “voluntários só houve dois: o Redentor e Judas”. No Direito, o calcanhar-de-judas, cuja variante chula indica que o critério de localização é o escroto do célebre personagem, pode ser urbano e indica endereço de difícil ou impossível acesso para que o oficial de justiça dê ciência de intimação ou notificação judicial.

Calcanhar-de-aquiles: do espanhol calcanhar com toda as influências do precedente, acrescido de Aquiles. O nome próprio do herói grego se tornou substantivo comum para indicar mudança de significado: designa o ponto fraco de alguém, algo difuso, de sentido metafórico, em geral vinculado aos setes pecados capitais: avareza, gula, inveja, ira, luxúria, orgulho e preguiça. A expressão remota à Grécia Antiga. Tétis, uma nereida (ninfa do mar), amante de Zeus (deus do céu) e Poseidon (deus do mar), foi por eles casada contra a vontade com um mortal, rei Peleus, porque a deusa da Justiça, Têmis, preveniu os primeiros de que ela teria um filho mais poderoso do que o pai. Por vingança, ou também desejo de tornar os filhos imortais por meio do fogo, Tétis matou seis recém-nascidos. Ao chegar o sétimo, segurou-o pelo calcanhar e mergulhou-o no Rio Estige, que tornava invulnerável quem nele submergisse. Sobrou o calcanhar, e nele foi atingido mortalmente, depois de vencer muitas batalhas. Atualmente, Tétis precisaria de bons advogados. Seus colegas de divindade também matavam parentes com crueldade, de modo que testemunhas de defesa deveriam ser encontradas fora do Olimpo, a morada dos deuses.

Desigualdade: do latim aequalitate, igualdade, antecedida do prefixo des, que indica negação. A desigualdade é marca do ser humano: ninguém tem o rosto ou a voz exatamente iguais aos de outra pessoa. Uma desigualdade muito notada e criticada é a social no Brasil um sério problema. Em recente trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), nosso país apareceu com uma injusta distribuição de renda, ao lado de uma das nações mais pobres, Serra Leoa, na costa oeste da África.

Deonísio da Silva doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, diretor do Curso d Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, autor de De Onde Vêm as Palavras (A Girafa, 14ª edição) e Avante, Soldados: Para Trás (A Girafa 9ª edição), entre outros 28 livros. E-mail: deonisio@terra.com.br

Revista Caras

2005

Doutor Deonísio da Silva
Enviado por zelia prímola em 09/08/2017
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