São Bernardo: a alma feminina de Graciliano

A obra São Bernardo, do escritor alagoano Graciliano Ramos é uma narrativa em primeira pessoa, contada pelo narrador-personagem Paulo Honório, cujo poder reduz e manipula tudo e todos a sua volta. Inicia-se como uma obra de ideologia política, pois, já no primeiro capítulo o narrador diz: “Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.”

Após desistir, dessa primeira idéia, Paulo Honório, se inscreve na obra, através da imagem de homem dominador e obstinado, que enfrenta sem escrúpulos os obstáculos que encontra em seu caminho, demarcando território e estilo, em palavras sem rodeio. O modo de narrar conciso resume sua vida, da infância à maturidade, selecionando as vivências mais importantes e descartando o que julga irrelevante.

Assim é Paulo Honório, uma voz que fala, conhece e domina o mundo que descreve de forma consisa. Já nos primeiros capítulos, graças ao tom narrativo, conhece-se o caráter violento e autoritário do homem que veio de uma infância miserável, e ascendeu economicamente com manobras, como as que envolvem Padilha, apoderando-se da fazenda São Bernardo.

“ Arengamos ainda meia hora e findamos o ajuste. / Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. (...) Não tive remorsos.”´

Após a conquista da fazenda São Bernardo, Paulo enfrenta e vence as dificuldades dos primeiros tempos, concluindo obras e investimentos, transformando a velha fazenda improdutiva e abandonada, numa grande e lucrativa empresa. A construção de uma escola na fazenda, agrada o Governador e pode render algumas vantagens políticas, sob o ponto de vista do fazendeiro de sucesso em que se transformou. Paralelamente, Paulo Honório sente necessidade de casar, para ter um herdeiro, e passa a idealizar uma futura esposa: morena, alta, saudável e com mais ou menos trinta anos. Amor ou apego são sentimentos que Paulo não cultiva, tal a praticidade e dinâmica, com que lida com a realidade.

“ Amanheci um dia pensando em casar.”

A partir de então, Paulo inicia um novo empreendimento: a busca de uma esposa, que une negócios e casamento. A visita à casa de Dr. Magalhães, tem o firme propósito da conquista de Marcela, filha do juiz de direito. Porém, lá encontra Madalena e sua tia, descrevendo a primeira como:

“ A loura tinha cabecinha inclinada e as mãozinhas cerradas, lindas mãos, linda cabeça.(...) Observei que a mocinha loura voltava para nós, atenta, os grandes olhos azuis. / De repente conheci que estava querendo bem à pequena. Precisamente o contrário da mulher que andava imaginando – mas agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. D. Marcela era bichão. Uma peitaria, um pé-de-rabo, um toitiço”.

Paulo Honório imbuído da posse de Madalena, investe como investira na posse da fazenda São Bernardo. À semelhança do que fizera com Padilha, rápido, ele se utiliza de algumas artimanhas, de momentos oportunos, propondo a ela um casamento relâmpago:

“ – (...) Vamos marcar o dia.

- Não há pressa. Talvez daqui a um ano... Eu preciso preparar-me.

- Um ano? Negócio com prazo de ano não presta. Que é que faltas? Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas.

Ouvindo passos no corredor baixei a voz:

- Podemos avisar sua tia, não?

Madalena sorriu, irresoluta.

- Está bem.

(...)

- D. Glória, comunico-lhe que eu e a sua sobrinha dentro de uma semana estaremos embirados. Para usar linguagem mais correta, vamos casar. (...)”

A mesma prática utilizada com Padilha, a manipulação rápida e a apropriação do objeto no menor tempo possível, faz do pedido de casamento uma transação, onde o sentimento de propriedade se sobrepõe à afetividade e ao amor. Paulo Honório precisa possuir e manipular pessoas, como se objetos fossem. Madalena é só mais um empreendimento, que deve servir a seus desígnios. Após o casamento com a professora Madalena, que passa a lecionar na escola da fazenda, convivendo com a classe trabalhadora mais humilde e com esta solidarizando-se.

À medida que Madalena se afasta do universo de proprietário, sensibilizando-se com os miseráveis trabalhadores da fazenda, Paulo acaba perdendo o controle sobre o objeto possuído, e é arrebatado pelo ciúme.

As brutalidades e atrocidades cometidas pelo esposo, horrorizam Madalena. Por outro lado, Paulo, não consegue compreender a mulher e sua sensibilidade, cujo espírito de liberdade, fogem do controle do marido. O ciúme e o sentimento de posse se aglutinam, dando origem a um ressentimento mesquinho, deste em relação a esposa.

“ De repente invadiu-me uma espécie de desconfiança. Já havia experimentado um sentimento assim desagradável? Quando? (...)

Quando? Num momento esclareceu-se tudo (...).

Sim senhor! Conluiada com o Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando.

(...)

É a corrupção, a dissolução da família, teimava Padre Silvestre.

(...)

Qual seria opinião de Madalena?Talvez nenhuma. Nunca me havia tratado disso.

(...)

Materialista. Lembrei-me de ter ouvido Costa Brito falar em materialismo histórico. Que significava materialismo histórico?

(...)

Comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil! “Palestras amenas e variadas.” Que haveria nas palestras? Reformas sociais, ou coisa pior. Sei lá! Mulher sem religião é capaz de tudo.

O sentimento de posse abalado pela dúvida e pelo ciúme de Paulo Honório, faz com que se inicie um processo de degradação conjugal, permeado pela profunda infelicidade da esposa, até à destruição de ambos e culminando com o suicídio de Madalena.

(...) Subindo os degraus da calçada, ouvi gritos horríveis lá dentro.

Entrei apressado, atravessei o corredor do lado direito e no meu quarto dei com algumas pessoas soltando exclamações. Arredei-as e estanquei: Madalena estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma no canto da boca.

Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração, parado.

No soalho havia mancha de líquido e cacos de vidro.

O desfecho com a morte de Madalena, destrói por completo a vida de Paulo, todas as coisas se tornam sem sentido, o significado de tudo lhe escapa. A tentativa vã de retomar o trabalho e os empreendimentos na São Bernardo, logo se transformam em tédio e desânimo. Sozinho e sem amigos, Paulo se vê num mundo à revelia e fora do seu controle.

(...) O mundo que me cercava ia-se tornando um horrível estrupício.

(...) E os meus passos me levavam para os quartos, como se procurassem alguém.

Paulo Honório abandona a ação e volta-se para si mesmo, paralisado pela derrota definitiva que foi a morte de Madalena, inicia a busca dos valores que norteiam as relações humanas. Segundo Lukács: “ O romance é a história da busca de valores autênticos por um personagem problemático, dentro de um universo vazio e degradado, no qual desapareceu a imanência do sentido à vida.”

Neste momento o caráter ativo e objetivo do narrador se esvai, o universo de Paulo é um vazio, o sentido da vida desaparece, fazendo com que o narrador busque na memória de sua vida o ponto em que se perdeu. Inicia-se um monólogo interior permeado de subjetividade e auto-análise. Paulo Honório resolve escrever um livro, na tentativa de buscar um sentido para sua vida, através do trágico encontro consigo mesmo. Nesse enfrentamento, Paulo sente que a brutalidade e o egoísmo fizeram dele um ser monstruoso.

“ Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.”

(...)

Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter o coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.

A auto-análise psicológica de Paulo Honório, através do monólogo interior do narrador, resulta no enfrentamento da realidade e, é o ponto culminante da obra de Graciliano, cuja alma feminina impregnada de sensibilidade, consegue fazer de São Bernardo uma narrativa confessional sob o ponto de vista do universo masculino. Incapaz de modificar-se e de voltar no tempo, Paulo Honório encerra o romance de sua vida dizendo:

“E vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

Bibliografia consultada

RAMOS, Graciliano. São Bernardo 39ª ed. Rio, Record, 1983.

LUKÁCS.G A teoria do romance. Ed. Presença.

Lislopes
Enviado por Lislopes em 17/08/2007
Código do texto: T611712