O Professor Doutrinador

"Num meio dia de fim de primavera" um aluno, manifestou uma dúvida sincera.

_Professor, o que acha da doutrinação nas escolas?

_Dadivosa, além de inevitável! Respondi obtendo o efeito desejado pela ironia empregada.

Queria causar espanto e desconcerto. Só pelo incômodo e pela desconstrução pode uma alma jovem mergulhar profundo, rompendo com toda obviedade entorpecente, com toda a fermentação intoxicante do senso comum, dos padrões consolidados por nossas velhas formas de pensar. "A filosofia nasce do espanto!" nos dissera Aristóteles, e antes dele, com palavras diferentes, Platão e outros sábios. Enquanto não desconstruímos o velho eu, que a tudo rotula de modo óbvio e enfadonho, a partir de suas certezas pré fabricadas, enquanto não o deixamos morrer de inanição para então renascermos para uma nova vida de reflexões, andamos pelos quatro cantos da terra tagarelando nossas verdades de papel machê.

O aluno, estava, então, espantado, e instigado. Queria saber como seu professor de filosofia fazia um elogio da doutrinação na Escola.

_ O que é Doutrina? Perguntei, com intenção dialética.

_ Não... Não sei. Confessou o jovem.

_ Pode alguém que não sabe o que é Doutrina saber o que é doutrinação? Prossegui.

_ Não... Confessou.

Eu sabia o que ele pensava entender por doutrinação: uma "lavagem cerebral" ideológica que converte jovens estudantes em militantes fanáticos. Na maioria das vezes, em "marxistas". (Interessante notar que a maioria que diz isso não sabe exatamente o que pensa um marxista).

_ Essa concepção de doutrinação é, intelectualmente, muito tosca, desprovida de análise crítica e de conhecimentos sólidos. Se isso realmente acontece, tal "massificação" e "conversão" ideológica poderia, no máximo, ser considerada uma forma de doutrinação, dentre tantas. Fiz, então, um inventário de reflexões e explicações, para que o entendimento ficasse mais claro. [Na ocasião, fui didático, e escolhi as palavras mais apropriadas]

1. O que é Doutrina? Segundo a maior parte dos dicionários consultados, "doutrina" é um conjunto de preceitos elementares,ideias fundamentais e princípios básicos contidos em um sistema de pensamento, seja filosófico, teológico, econômico ou científico. A palavra portuguesa doutrina vem do latim, "doctrina". que significa "ensino", "ensinamento", "saber". Se liga, não por tradução direta, mas por analogia, ao grego didaskalia, que significa "instrução" e "ensino" ou "ato de ensinar". Por isso se entende que a palavra "douto", ou "doutor" tem a mesma raiz que a palavra "doutrina", remetendo a "saber" e "saber ensinar". Logo, a Escola é necessariamente doutrinadora. Essa é justamente sua função social e sua missão espiritual. O evento escolar, enquanto rito de ensino e instrução, é essencialmente doutrinador. Doutrinar é ensinar os fundamentos, os valores mais básicos, os pressupostos irredutíveis, de uma forma de pensar. A própria escola é uma doutrina! Não está escrito nas estrelas, não cai do céu nem brota das árvores, a norma universal de que as pessoas devem ser alfabetizadas, aprender a ler e escrever, aprender ciências, artes, letras, histórias, folclores. Houve um tempo em que pouquíssimas pessoas sabiam ler e escrever. A ideia de que a educação deve ser universal, a ideia jus naturalista de que a educação é um direito natural de todo ser humano, é, em si mesma, uma doutrina. Quando olhamos uma escola, o que vemos é uma doutrina encarnada. A democracia também é uma doutrina. O seu salário, acima do mínimo, e as demais leis trabalhistas, fazem parte de uma doutrina. Lembre-se disso nas próximas férias! A doutrina está por toda parte.

2. Pela natureza doutrinária da cultura, não somente a Escola é doutrinadora, como a família, as religiões, a sociedade como um todo, o trabalho, o matrimônio. Doutrinamos uns aos outros, o tempo inteiro.

3. Em sentido técnico, temos, na teologia, a "Doutrina Católica", "Doutrina Protestante", "Doutrina Espírita", et caetera. Como exemplo podemos citar a "Constituição Apostólica Indulgentiarum Doctrina" da Igreja Católica na qual, em seu primeiro parágrafo, nos diz que "A doutrina e o uso das indulgências vigentes na Igreja Católica há vários séculos encontram sólido apoio na revelação divina". Toda religião possui um núcleo fundamental de ideias básicas. Eis aí sua doutrina. Na economia temos a "Doutrina Liberal", "Doutrina Neoliberal", "Doutrina Socialista", et caetera. Na Filosofia do Direito temos a "Doutrina Kantiana", a "Doutrina Hegeliana", et caetera. No Direito em si, a Doutrina condensa a literatura jurídica, o corpus literarium, que serve como base hermenêutica para a exegese e a aplicação da lei.

4. Toda doutrina possui uma dimensão política e ideológica.

5. A educação é um ato político. A política é inevitável. Lembremos que todo cidadão vive na Polis. A sentença aristotélica jamais perdeu em atualidade: "O ser humano é um animal político". Vive em sociedade. A educação consiste em transmitir conhecimentos, saberes, valores, desenvolver a criatividade, a originalidade, a curiosidade, o senso crítico e o espírito investigativo de jovens cidadãos que herdarão a Polis. A educação é política. Os partidos políticos não esgotam, nem de longe, a dimensão política da vida social e da cidadania. Resguardar a dimensão política e doutrinária da Escola não é somente inevitável, como necessário, desejável, verdadeiramente salutar, para que a alienação cívica e a idiotia política, enquanto patologias sociais, não se alastrem, despolitizando, embrutecendo e emburrecendo as futuras gerações.

6. A escola deve ser plural, não pode ser monodoutrinária. Deve transmitir ao aluno, sem tabus e preconceitos, todo o pluralismo doutrinário, toda riqueza antropológica e histórica presente nas ciências, artes, letras e saberes populares.

7. Isto posto, muito acertadamente, todo professor é um doutrinador, e o fato de que tal cause espanto em boa parcela da sociedade é prova inconteste de que tal parcela precisa voltar aos bancos escolares, ler, estudar, ser re-doutrinada, desenvolver um mínimo de erudição - não muito caso não queira - mas o suficiente para que seus preconceitos, ignorância e ideias tortas não contaminem as mentes mais jovens, causando imensa confusão e prejuízos intangíveis para a sociedade.

Após fazer tais comentários, mas com palavras simples, o jovem teve imensa presença de espírito. Abriu sorriso maroto e disse:

_ Então me doutrina!

_ Com prazer... A intenção é justamente essa! Caso contrário não seria professor. Sorri de volta.