O que Lázaro fazia na morte?

Um interessante argumento é evocado pelas Testemunhas de Jeová para defender que os mortos estão inconscientes: a ressurreição de Lázaro.

Ora, consta no Evangelho de João que Lázaro já estava morto há quatro dias quando foi ressuscitado. Admitindo que não fosse o inferno o destino da sua alma, já que era uma pessoa da especial afeição de Jesus, a ressurreição teria arrancado Lázaro do céu ou ao menos de um plano superior da existência.

Se aquilo que hoje conhecemos como Experiência de Quase-Morte acontece, com algumas variações, com todo mundo na hora da morte, também Lázaro, naquele tempo, deveria ter passado por essa experiência, descrita por quase todo mundo como sublime.

Se Lázaro teve também as sensações maravilhosas que são atribuídas às experiências de quase-morte, então seria uma crueldade de Jesus tirá-lo de lá para fazê-lo voltar à nossa pobre vidinha material.

Acresce-se a isso que o Evangelho não fala absolutamente nada sobre as impressões de Lázaro no momento em que era tido como morto – em verdade, não sabemos sequer se ele gostou de voltar à vida.

Mas isso não significa que não possa ter tido também uma EQM, ou que inclusive já estivesse em meio a algum tipo de paraíso – simplesmente, João não anotou nenhuma fala dele.

Também os espíritas, no entanto – crença bastante diversa daquela das Testemunhas de Jeová – preferem acreditar não em uma possível omissão por parte do evangelista, mas em um Lázaro que não estava morto de verdade.

Lázaro, dizem, estava inconsciente – e nisso concordam com as Testemunhas de Jeová. Mas acreditam que era um caso de morte aparente, envolvendo letargia ou catalepsia.

Lembram que o próprio Jesus chegou a se referir ao estado de Lázaro como “sono”, mas omitem propositalmente o versículo “Então Jesus disse-lhes claramente: Lázaro está morto”, porque os discípulos haviam levado aquela história de sono ao pé da letra e achavam que Lázaro apenas dormia.

Ou seja, o próprio Jesus diz que Lázaro está morto, não morto aparente. Então ou Jesus se equivocou ou Jesus mentiu – e nenhuma das duas hipóteses, naturalmente, agradará aos espíritas.

É surpreendente, mas, nesse ponto específico, onde há maior coerência entre a crença e o texto bíblico é realmente com as Testemunhas de Jeová.

Não se concluí daí, no entanto, que todo o Evangelho esteja de acordo com a crença das Testemunhas de Jeová. Elas precisam lidar com contradições, como o caso do outro Lázaro que, em parábola de Jesus, morreu e foi logo em seguida ao inferno, e também à palavra de Jesus ao bom ladrão, de que estaria com ele no paraíso “hoje” (provavelmente, nesse último caso as Testemunhas de Jeová usam a mesma artimanha dos adventistas, que seguem uma tradução bastante controversa, e que tem o objetivo claro de salvaguardar a crença de que os mortos continuam mortos depois da morte).

Disso isso, o que seriam as experiências de quase-morte? O que são esses relatos de gente que chegou perto de morrer e voltou falando que viu coisas? Os espíritas, naturalmente, deitam e rolam nesse ponto, para eles uma comprovação da sua crença. Às Testemunhas de Jeová não resta outra saída que não a de atribuir tudo a um terrível plano do diabo para confundir e afastar as pessoas da verdade.

Embora eventualmente elas possam adotar as explicações materialistas que a ciência oferece (e que ainda não dão conta de todo o fenômeno), haverá sempre uma contradição fundamental, pois, se as EQM são consequência de certos fenômenos da Natureza, então elas também devem a sua origem ao Deus que criou todas as coisas. Sendo assim, onde estaria o mal dessas experiências? Acaso Deus não sabia que essa característica da sua criação em momento próximo à morte iria fazer com que muitos se afastassem da Verdade?

É preciso, pois, que tudo seja atribuído à influência demoníaca. O problema é que essa é uma resposta muito fácil, que desqualifica todo o fenômeno em bloco e para de pensar sobre ele.

Sem falar que é preciso também, nesse caso, atribuir um pouco de bondade ao diabo, pois, se bem que desvie o sujeito da crença quanto à inconsciência dos mortos, por outro lado promove verdadeiras revoluções morais e espirituais em quem passa pela experiência – como talvez nem a igreja consiga.

Frederico Milkau
Enviado por Frederico Milkau em 09/02/2018
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