Marxismo autogestionário, a terceira fase do comunismo

A primeira fase do comunismo foi longa e foi marcada pelos ensinamentos de Karl Marx e Lênin. Era a ideia da luta política e econômica, a primeira dirigindo a segundo, os partidos controlando os sindicatos, e se preparando para tomar o poder político. Para isso, era preciso conquistar os trabalhadores, operários principalmente, visando ter força popular para sustentar o novo poder. A fase de Marx foi mais de teorização, sendo que a fase de Lênin foi de aplicação e renovação da teoria para ações pragmáticas. Nessa fase, houve a Revolução Russa e a formação da primeira nação socialista – fase intermediária para chegar ao comunismo – e se tornou modelo a ser seguido por todos os partidos comunistas e assemelhados. Essa fórmula deu certo em outras situações, como no Leste Europeu, China, Cuba, alguns países africanos. Essa fase leninista se mostrou eficaz nos países mais empobrecidos e que a pobreza, falta de industrialização, revolta, são bons fermentos para partidos organizados, disciplinados, tomem o poder em nome dos trabalhadores.

A segunda fase do comunismo nasceu nas prisões com o nome de Antonio Gramsci. Embora ele mantivesse algumas ideias básicas da primeira fase, ele adaptou o marxismo para as sociedades avançadas e desenvolvidas. Ele mesmo distinguiu entre “oriente atrasado” e “ocidente avançado” e concordou que as teses da primeira fase servem para o primeiro caso, mas não para o segundo. Ele desenvolve a teoria para a segunda fase, que teve sucesso na Itália e outros países europeus (Eurocomunismo) sem ter conseguido, no final, chegar ao poder estatal. Também influenciou o resto do mundo, principalmente a partir dos anos 70 e 80. O que ele acrescentou foi a ideia da conquista paulatina do poder civil para chegar ao poder político e ressaltar a importância da cultura nesse processo. Porém, o fracasso das experiências soviéticas depois da queda do muro de Berlim, a perda de espaço do marxismo, o fim do eurocomunismo, deixaram o gramscianismo na UTI das concepções políticas. Perdeu bases teóricas (o marxismo sem espaço e cada vez mais contestado por todos os lados e aspectos), perdeu força política (derrota do eurocomunismo, dos aliados soviéticos) e embora ainda seja elemento que tenha força e participa parcialmente de governos (Governo Lula, no caso brasileiro), deixou de ser a grande alternativa marxista ao comunismo da primeira fase.

É nesse contexto que emerge o marxismo da terceira fase. Ele já existia embrionariamente desde a revolta dos estudantes de Maio de 1968 em Paris e sua palavra de ordem preferida é: autogestão!! Alguns escritos e teorias foram produzidas após este evento exaltando a autogestão e tentando uni-la com o marxismo. O marxismo autogestionário, incrivelmente, nasce de forma sistematizada em solo brasileiro e já tem ressonâncias para fora – basta uma pesquisa pela internet para ver seus ecos na Espanha e Portugal. O que ele traz de novo é uma ruptura com o comunismo da primeira fase, principalmente o pragmatismo leninista que é descartado e combatido, e recuperação e reinterpretação de Marx, e negação também do comunismo da segunda fase. A sua proposta central é a chamada “autogestão social”, que retoma diversas tradições e as une numa concepção sistemática que se livra das ligações com o autoritarismo leninista e as experiências soviéticas (caídas em desgraça) e seus elementos reproduzidos pelo gramscianismo. Da mesma forma rompe com o gramscianismo tanto em sua ligação com o leninismo quanto em sua crença na participação na democracia “burguesa” e qualquer compromisso com as instituições e poderes estabelecidos. É desta forma que consegue renovar o marxismo e afastá-los dos partidos comunistas em geral, inclusive de seu passado autoritário, suas corrupções, entre outros aspectos mais, e consegue aglutinar os descontentes, juventude, e grupos políticos pequenos e hostis anteriormente ao marxismo, que agora passam a ser seus satélites. O marxismo autogestionário dominou o anarquismo e o usa para seus propósitos e aglutina também os descontentes com o leninismo e gramscianismo, o comunismo da primeira e segunda fase em decadência. Garantiu a herança de lutas passadas e se livrou do peso da corrupção que assola os partidos comunistas e, ainda, de quebra, vem com o purismo e encantadora imagem de incorruptibilidade e desinteresse por não almejar a conquista do poder estatal, não formar partidos e não disputar eleições, tudo isso criticado de forma bem elaborada. Realiza uma síntese de concepções de Marx, anarquismo, situacionismo e outras, sem falar que mantém, mesmo sem reconhecer, elementos do comunismo da segunda fase (a ideia de “luta cultural” é bem semelhante à luta pela hegemonia de Gramsci). A sua força teórica é um dos seus pontos fortes. A sua ideia política é que a população deve se autolibertar, especialmente o proletariado, e isso deve ser feito através de greves, conselhos de trabalhadores, e por isso pode aglutinar todos os setores rebeldes da sociedade e seu grande público são os jovens, estudantes, acadêmicos radicais, descontentes em geral. Ele tem até um manual que contém uma verdadeira cartilha de como agir para realizar a revolução autogestionária. Trata-se do livro Manifesto Autogestionário, de Nildo Viana, o principal ideólogo do marxismo autogestionário que já publicou dezenas de livros sobre os mais variados assuntos – de acordo com sua estratégia e ideia de “totalidade”. O capítulo sobre Estratégia revolucionária é exemplar, mostrando os passos para a luta revolucionária obter sucesso. Com ares de novidade, o que existe realmente, mas mesclado com ideias antigas, refuta concorrentes como os inspiradores pós-modernistas e ao mesmo tempo recupera algumas de suas ideias.

A questão que se coloca é: o marxismo autogestionário dá conta de responder as questões postas em nossa época? Outra questão importante: essa será a última fase do marxismo? O marxismo irá se realizar ou simplesmente acabará? Ao que tudo indica, o marxismo deve continuar existindo enquanto as bases sociais que o criaram continuarem existindo. Não parece que essa será sua última fase, afinal é preciso uma superação que enfatize a força organizacional e permita se pensar numa verdadeira revolução. O problema é que o retorno ao leninismo e ao gramscianismo é inviável e eles são incapazes de superar seus limites. O marxismo autogestionário não dá conta de responder aos problemas de nossa época, está muito preso à ideia de autogestão, uma ideia bonita mas inviável. O problema organizacional é o fundamental no plano político e a resposta do marxismo autogestionário é insuficiente. O problema da revolução e do comunismo também não é bem respondido por ele. Falta visão mais ampla e dos problemas que foi o foco (e o problema) do leninismo (a questão da violência e da tomada do poder). O marxismo autogestionário tem como mérito trazer novas contribuições teóricas sobre várias questões, voltando a tradição marxista inaugurada por Marx e enfraquecida pelo leninismo e gramscianismo. Mas nas questões políticas fundamentais (organização, revolução, comunismo) deixa a desejar.

O que nos resta, então, é esperar sua quarta fase, talvez uma síntese de todas as demais, retomando Marx e sua contribuição teórica, Lênin, Gramsci e Viana e suas contribuições para discutir a questão organizacional e cultural, superando os erros e limites de cada um e aproveitando suas reais contribuições. A nossa tarefa hoje é, portanto, buscar construir o marxismo da quarta fase.