Deus e o povo chimu

Foram encontrados os esqueletos de 140 crianças sacrificadas aos deuses pelo povo chimu, que vivia no atual Peru. Esse ritual de sacrifício não aconteceu há milhares de anos, mas há pouco mais de 500 anos, o que, em termos de História, significa ontem. Ontem, 140 crianças foram sacrificadas para os deuses. O objetivo não está claro, mas parece associado a enchentes e inundações em região que normalmente era de tempo seco. 140 crianças, e muitas lhamas, foram sacrificadas para aplacar a ira dos deuses, ou para pedir a sua intervenção diante das catástrofes típicas de El Niño pelas quais o povo chimu passava.

Era um tempo anterior à chegada de Colombo. O povo chimu não conhecia a Jesus, nem Maomé ou Buda. E, no entanto, trazia dentro de si um sentimento religioso que precisa se expressar de alguma maneira. Às vezes se aventa a possibilidade de que cada ser humano carregue, em seu DNA, o gene da religião. Se isso se deve a algum acidente ao longo da evolução, e não à existência real de um Deus, então não há o que se fazer senão lamentar que isso tenha dado margem à tamanha crueldade em nossa história. Mas e se existe realmente um Deus, se foi ele quem implantou em nosso código genético o sentimento religioso, o desejo de culto e adoração? Nesse caso, o massacre das crianças chimu é uma consequência da ação desse Deus.

Pode ser que Deus não quisesse que crianças fossem sacrificadas em sua honra. Mas essa era uma reação possível para quem carregava a religião dentro de si e teria que expressá-la de alguma maneira. Se o sentimento religioso é intencional, e se é alguém é tão poderoso a ponto de decidir o que incluir em nosso DNA, é de se imaginar que também soubesse o que viria a seguir. Qualquer Deus que fosse onisciente teria conhecimento de que crianças seriam sacrificadas para ele. Mas nem por isso ele teria deixado de inscrever a religião dentro de nós.

Vamos dizer que o Deus da Bíblia seja verdadeiro. Se for assim, era preciso que, de alguma maneira, alguém pregasse o Deus da Bíblia para o povo chimu, como a qualquer outro povo do mundo. Mas ninguém pregou o Deus da Bíblia para o povo chimu, depois eles seriam assimilados pelos maias e só então haveria contato com os espanhóis cristãos. Não se pode dizer que o povo chimu tenha rejeitado a palavra de Deus, posto que não a conhecia. Mas eles tinham a necessidade religiosa como qualquer humano ou qualquer sapiens. Não havia ninguém para disciplinar a sua religião, dizendo o que agradava ou deixava de agradar a esse Deus da Bíblia. Eles seriam vítimas do seu código genético, e o código genético deveria sua existência a Deus.

Se for assim, qual é a culpa que pode ser imputada ao povo chimu, já que nem mesmo Deus se preocupou em orientar o sentimento religioso que colocou dentro de cada um dos seus membros? É preciso insistir: se Deus há, Deus sabia o que iria acontecer e todo o mal que iria ser feito em seu nome e para o seu louvor. Deus, de certo, sabia a respeito dos dinossauros também. Toda a violência do mundo jurássico era do conhecimento do Deus ou da força que tenha criado, intencionalmente, esse Universo. E Deus não esperava outra coisa desses dinossauros senão a violência. Haveria alguém com estômago suficiente para acreditar, por exemplo, que a violência dos dinossauros e o sacrifício das crianças não são atos maus em si mesmos, já que contam com o endosso do próprio Deus?

O livro-arbítrio, eterno guarda-chuva a poupar a imagem de Deus, não se aplica a quem tenha sido posto para viver sem ter a menor ideia das regras e do que deveria fazer.

Frederico Milkau
Enviado por Frederico Milkau em 29/04/2018
Reeditado em 29/04/2018
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