DO MÍNIMO DE MINAS AO MÁXIMO DE NÓS: UMA LEITURA SOBRE O LIVRO "CACOS PARA UM VITRAL"

"Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis."

Carlos Drummond de Andrade

Adélia Prado nasceu em Divinópolis, Minas Gerais. Aos 40 anos publicou Bagagem, seu primeiro trabalho literário que fora recomendado pelo grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. O texto de Adélia é confrontador. Dentre tantas coisas que nos fica exposto em sua prosa, destaco a beleza com que habilita os seus leitores a perceber suas próprias memórias. Há um homem “adeliano”: "hominem memoriam", que sempre aparece figurando em suas recordações, ora as possuindo, ora parecendo ser por elas possuído. A devida apreciação quanto ao trabalho literário de Adélia Prado exige que sejamos corajosos o suficiente para procurarmos por detrás de nossa desfaçatez, tudo aquilo que realmente nos constitui: os amores, os medos, a fé, os desejos, o pecado, e toda a gama humana de realidades que velamos por detrás de sofisticadas ideologias e falsas espiritualidades.

Suas descrições sobre a vida e o cotidiano fazem o mesmo percurso do fenômeno humano, nos expondo sempre ao máximo de nós mesmos. As memórias dos seus personagens são organizadas nas palavras de Adélia em termos de uma constituição antropológica, e embeleza aquilo que realmente temos: “o cotidiano”. Em seu romance: "Cacos para um Vitral" é o cotidiano da personagem Maria da Glória Fraga Magalhães que se desvela nos acontecimentos que vão do mínimo de Minas Gerais ao máximo de nossas vidas.

"Glória sentia com aquilo a mesma sensação que lhe provocava o matinho detrás da janela de tia Palmira, samambaia misturada com buquê de noiva, moita de azedinha e funcho. O jardinzinho de tia Palmira, o xarope de dona Cessa, seu pai reformando a casa: ... na platibanda a gente põe assim uns fingimentos de estrela, eu mesmo faço, de massa forte. Pra canteiro, acho melhor forma de meia-lua e doce de leite... Que espécie de coisa eram tais coisas? O pai reforçava: canteiro quadrado não, sem poesia. Então era isso, falou Glória descobrindo, nomeando o tesouro: poesia, as orgiazinhas, os orgasmozinhos faiscantes; nos canteiros, no matinho, no xarope que a velha queria a qualquer custo, sem poder explicar a mais funda razão do seu querer. Meu Deus! Agora agüento ficar velha, disse Glória, nunca ficarei velha. A poesia é de Deus. Dona Zi tinha morrido, dona Cessa sofria, e a vida era maravilhosa".
(PRADO, 2006, p.10-11).

O texto é corrido, assim como o tempo em que tudo se dá na vida de Maria da Glória: professora, mãe, católica e mulher. Vez por outra a frase: “no caderno” antecipa aos leitores as meditações da personagem, se reinterpretando a partir de tudo o que vivia. Realidades que vão se misturando e desenhando seus caminhos. Prazerosos, de tão contraditórios que são. Aqui está uma das grandes engenhosidades de Adélia: mostrar-nos, a partir de nós mesmos. Nosso dia-a-dia, com todas as obrigações que nos são postas, nos permitem a visão por dentro. Da rainha da Inglaterra às lavadeiras de Divinópolis, todas estão envolvidas com as obrigações que lhes dizem respeito: a profissão, a religião, a maternidade, a sexualidade. Obrigações expostas na vida dos seus personagens mediante todas as alegrias e insatisfações que lhes dizem respeito:

"No caderno: A vida é servidão, descubro olhando meus sapatos. Tenho pertences: o relógio, a bota, o argumento terrível. Deus não tem nada. Já fui lépida e límpida, tinha o dente ridente, ia arranjar um marido. Eu não me engano mais. Mesmo o canto da liberdade esta preso ao seu ritmo. O Senhor é o meu Pastor e tudo me falta, tenho onde cair morto, certamente terei quem com um olho me chore e outro me ria. Bom é ser como a pedra que é vazia de si. M. G. Fraga".
(PRADO, 2006, p. 54).

Os textos de Ritinha, sua filha, nos acolhem em bilhetes e poesias que tiram Maria da Glória da mira do tempo, e nos faz mães com ela:

"Ritinha entregou a Glória um papelzinho dobrado: lê só depois que eu sair, disse. Querida Maria da Glória Fraga Magalhães. Você é uma professora de mão cheia. Você é linda, simpática, sorridente, maravilhosa. Parabéns, muitas felicidades. Ass.: O Sombra. Ah! Ah! Ah"!
(PRADO, 2006, p.71).

"Poesia de Ritinha: Maria Fraga tem a honra de ser irmã de uma donzela e também a honra de ser menos feia que canela: Rita Fraga Magalhães".
(PRADO, 2006, p.84).

Adélia Prado ensina aos escritores cristãos como se escreve por “vocação”. Poesia para Adélia é êxtase espiritual. A medida da espiritualidade se constitui no tanto de intimidade que a sua prosa nos inscreve. A habilidade com que harmoniza situações às vezes tão adversas faz da prosa de Adélia uma porta aberta para a fé, conferindo a experiência humana uma excelência espiritual, onde tudo é narrado pela beleza, como em: “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8.28).