Felicidade X Alegria

Da série: DUALISMOS

(Uma visão analítica, num olhar literário)

“A felicidade morava tão vizinha,

Que, de tolo, até pensei que fosse minha. ”

(Chico Buarque de Holanda, "Até Pensei", 1968)

Uma cena do cotidiano. Vamos imaginá-la:

...

Um sujeito está num bar, bebendo, desbragado. Convida alguns amigos a se juntarem a ele; paga uma rodada de bebida; conta uma piada; elogia uma morena que, cuidadosamente, se certifica que está desacompanhada; bate no peito e canta com voz embargada uma canção qualquer; passa o braço direito por detrás da cerviz de um camarada, alcançando a sua espádua, solta uma gargalhada ao mesmo tempo em que levanta uma garrafa de cerveja com a mão esquerda, como se fosse um troféu. Na verdade, é. Naquele instante ele comemora algo que, no fundo, não sabe ou deseja não saber. Não importa: é o seu momento, único, de se afogar ou se afugentar. Precisa desesperadamente ser feliz, ou, pelo menos, achar que o é. Assim, passa uma boa parte da noite no botequim. Pessoas ao redor, etilicamente comovidas, dizem: “o João está feliz”. E compartilham os simulacros de felicidades em tantos copos de cerveja quanto possam tragar. Quando a noite se agiganta, João sai do bar. O “feliz” homem, que arregimenta sorrisos, caminha e tropeça em passos lentos até a sua casa, logo ali, dobrando o quarteirão. Chega ao destino, se depara com a sua realidade: a mulher, Maria, muda e emudecida pela tristeza, ao lado dos três filhos, zelando pelo caçula, que se consome em febre; os outros dois chorando de medo e fome; Contas se avolumando sobre a mesa da sala; um grande vazamento embaixo da pia; a geladeira vazia; o vira-lata doméstico que não para de latir. A senhoria que já veio 3 vezes ao seu encalço cobrar o aluguel atrasado....

.....

Não é difícil adivinhar o tipo de vida do hipotético, mas representativo João. Tampouco, parece-nos tarefa árdua perceber o espectro de sentimentos que se alternam na administração do seu dia-a-dia. João, Maria e todos (as) os (as) outros (as) não são existencialmente felizes, pois não têm nem nunca tiveram a propriedade da ventura. Apenas são expectadores. Os momentos no bar ou em qualquer uma das suas personificações que se queira considerar, são apenas espasmos. Manifestações de um comportamento buliçoso que insiste em aparecer toda a vez que a dor se projeta nas sombras da rotina. Estou a falar de um sentimento menos existencial e mais providencial: a alegria. Esta, necessária se faz, é claro, para pincelar as ranhuras, dando-as um verniz mais agradável ao semblante carrancudo que os problemas e os dilemas hodiernos arquitetam sob os nossos olhos. Somos alegres, e devemos sê-lo, porquanto o Criador, a despeito de tantas mazelas fabricadas pelos homens e expostas na ferida fria do tecido social, nos presenteou com esta armadura. Celebramos porque devemos celebrar, mas também choramos porque é necessário fazê-lo, seja qual for a extensão do desastre havido. A compreensão da inatingibilidade da felicidade é atributo que, talvez, as experiências dos decanos, as cãs das cabeças mais vividas, possam nos mostrar, se estivermos, decididamente, dispostos a absorvê-la. Via de regra, não queremos. Não por empáfia ou mero desinteresse, mas porque as nossas ambições do agora estão suficientemente atribuladas de ilusões. A cada dia, todo o profano, sagrado e santo dia, não atingimos a percepção do inatingível, mas mesmo assim, continuamos e continuamos e continuamos.... Colecionamos sofrimentos, pelo eufemismo das frustrações, pois não nos contentamos apenas com a alegria, queremos a felicidade, toda ela. E assim vamos vivendo chamando alegria de felicidade, e felicidade de esperança. É a nossa missão também sonhar, afinal, contrariando os versos do Chico, ela, a felicidade, no imaginário dos iludidos, pode ser mais do que uma simples vizinha e nós não tão tolos como supõe o poeta.

© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves

12 de maio de 2018

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Leonardo do Eirado
Enviado por Leonardo do Eirado em 19/05/2018
Reeditado em 30/06/2018
Código do texto: T6340743
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