Coerência X Conveniência

Da série DUALISMOS

(Uma visão analítica, num olhar literário)

Coerência X Conveniência

Ainda está fresco o verniz da memória do dia em que eu estava em companhia dos meus companheiros de farda futebolística, compartilhando com eles o concreto da arquibancada. Era um clássico disputado contra o nosso maior rival. A atmosfera estava perfeita para a exacerbação de todos as emoções, preferencialmente aquelas que se dispusessem a nos agasalhar de júbilo por um tão esperado triunfo. A partida, em si, era a expressão contundente da tensão e do sofrimento, elementos que, pela sua essência, sempre acompanham o périplo passional de um torcedor. O jogo não se transcorria, pois seria uma indignidade com a acepção deste termo. Na verdade, ele se arrastava, melancolicamente, para os dois lados do prélio, diga-se. Sendo no inverno, o clima trajava um manto frio que, como tal, a exemplo de um irascível vulcão, provocava erupção nas dermes e epidermes desfavorecidas de tecidos mais apropriados. Os arroubos da brisa gelada, só perdiam para a temperatura do jogo: zero. Não zero grau, saliente-se, mas um zero-a-zero sofrível. Quando tudo se encaminhava para a manutenção da castidade do placar, eis que o adversário, num lance fortuito de cruzamento para a sua área de ataque encontra uma mão de um jogador, nosso correligionário, em rota de colisão com a trajetória da bola. O resultado foi substanciado pelo sibilo do apito do juiz: pênalti. Convertido, infelizmente. A grita foi geral: “juiz ladrão! ” Houve ainda uma evocação nada elogiosa à sua ancestralidade feminina, que não convém detalhar. “Não foi pênalti, foi bola na mão”, diziam os encolerizados torcedores do meu time, ora perdedor. Eu, diante de tamanhas imprecações irracionais, do alto de minha temperança, recolhi-me ao prudente silêncio e soliloquiei: “como podem alegar bola na mão do nosso defensor? ” “A mão dele, descuidada, sequer guardara uma proximidade com o corpo, capaz de produzir uma dúvida minimamente razoável na mente do árbitro”. Pênalti clamoroso, lamentavelmente, contra nós, concluí com uma racionalidade descontextualizada do clubismo ali manifestado nos degraus de cimento. Entre queixumes o jogo prosseguiu num ritmo, para nós, de tragédia quase consumada, quando, no estertor da partida, por ironia do destino, o nosso atacante ao projetar uma bola para a área adversária, em circunstância idêntica ao gol anterior, encontrou a mão de um defensor rival a interceptar o cruzamento. “Pênalti, gritaram ensandecidos os torcedores do meu time”. “O lance foi claríssimo: mão na bola”, diziam. Resultado: infração igualmente percebida, marcada e felizmente convertida em gol. Final da peleja: 1 a 1. Na saída do estádio, pude captar a inevitável resenha: ”juiz safado, garfou o nosso time. Inventou um pênalti para eles”, isso para ficar apenas nos dizeres mais amenos. Não seria difícil supor que a mesma textura de comentários era replicada pela torcida arquirrival, que saia por outro portão.

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Narrativas futebolísticas à parte, cumpre-me, por meio da relatada alegoria, estabelecer um paralelo com um fenômeno que se repete com uma frequência maior do que supõe o nosso desaviso: o emprego seletivo da coerência e da conveniência, notadamente no trato das nossas afetividades, sejam elas no ambiente familiar, profissional e social, sejam no campo árido das questões raciais, sexuais, políticas e religiosas ou ainda no campo gramado e adubado das predileções do futebol e de outras entidades para as quais nos propomos a torcer.

Na análise dos fatos, as nossas crias, materiais, simbólicas ou existenciais, invariavelmente, são blindadas por uma plêiade de argumentos, revestidos de um dogmatismo cuidadosamente elaborado. Relativizações só são consideradas quando o resultado for a desfavor dos antagonistas. As contradições aparentes, elementos de um silogismo hipócrita, repousam nas especificidades de cada momento. Se o público interlocutor é alheio à família debatedora, em qualquer dimensão que a palavra paroxítona possa se traduzir, então a armadura afetiva se constrói também por meio de perguntas do tipo “o que você faria se fosse com os seus? E se fosse o seu time, escola de samba, sua igreja, sua raça, seu político corrupto de estimação, por exemplo?

Todos, sem dúvida, nas concepções mais filosóficas, clamam pela coerência em detrimento da sua irmã, a conveniência. Talvez, num plano secreto, desejem que se encontrem, malgrado a experiência demonstre que elas nunca chegam a tempo de se reunirem. Sempre que o confronto se faz inevitável, as duas irmãs, geometricamente, caminham como retas paralelas para o encontro apenas no infinito.

Na esteira do debate, em favor da conveniência, alegam-se instintos maternos, próprios da natureza anímica feminina, capazes até de subverter a lógica aristotélica mais consolidada. Na guarida de um pensar exclusivamente afetivo, é plausível conceber, em alguma medida, julgamentos flexíveis e condescendentes acerca de linhas argumentativas extremadas de uma mãe, na defesa intransigente das ações de seus filhos, biológicos ou não, diante de uma situação de flagrante erro, para dizer o mínimo. A natureza passional de uma genitora, em sua retórica, se consubstancia numa espécie de “licença poética”, guardadas as devidas proporções entre o fato, sua repercussão e o seu impacto perante os envolvidos. Afinal, somos humanos e falíveis até quando não devemos sê-los.

Mas, ... e nos outros casos, totalmente apartados de instintos maternais, por assim dizer, por que deve a conveniência prosperar? Como podemos construir uma sociedade justa e igualitária, se nós queremos que os interesses individuais, os nossos, naturalmente, prevaleçam, amiúde, sobre os coletivos, por mais consistentes que estes últimos sejam? Não logrará êxito moral, ou de qualquer outra ordem, uma sociedade que enviesar o seu olhar prioritariamente ao atendimento de necessidades particulares, como se fosse uma assembleia realizada naquelas lojinhas construídas no fundo dos postos de gasolina.

Enfim, conclamo todos a refletirem com o DNA da honestidade. Para subsidiar tal reflexão, como epílogo deste ensaio, reproduzo um pensamento meu: “Procurei pela verdade na casa da coerência e da conveniência. Na primeira habitação, encontrei uma senhora recatada, vestida com uma burca indevassável que apenas se pronunciava depois dos pressupostos validados pela justa consciência. Na segunda morada, deparei-me com uma jovem libertina, que exalava volúpia e se pronunciava toda vez que a consciência, oportunista, não tinha pressupostos para oferecer”

© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves

23 de maio de 2018

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Leonardo do Eirado
Enviado por Leonardo do Eirado em 24/05/2018
Reeditado em 30/06/2018
Código do texto: T6345320
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