Estamos Mesmo às Vésperas de uma Copa do Mundo?

Estamos mesmo às vésperas de uma copa do mundo?

(O monstro que tudo traga, e que a esperança estraga)

Quando eu tinha 5 anos, mais precisamente em 21 de junho de 1970, estava em minha saudosa casa de n° 181, no bairro de Brotas, em minha cidade natal, pavimento térreo, com uma área externa frontal cimentada abraçada por um muro verde e um pequeno portão de ferro. Este dia, por óbvio, especial para os amantes do futebol, notadamente os de coloração verde-amarela e verde-branca-vermelha, era o da grande final da Copa do Mundo do México: Brasil versus Itália.

A seleção nacional era inesquecível, espetacular, digna de todos os elogios e reverências. Capaz de participar, perfeitamente, e até conquistar o Campeonato do Olimpo, mesmo enfrentando Zeus e todos os seus, pois os deuses daqui, os do futebol, a exemplo dos mitológicos, também montaram uma seleção divina, olímpica. Se os de lá tinham Apolo, Afrodite, Poseidon, Hermes, Hades e outros da legião, também tínhamos Clodoaldo, Gérson, Rivelino, Carlos Alberto e Tostão. Se eles tinham, Zeus, o deus supremo, que é, nós também tínhamos o nosso: O Edson Arantes do Nascimento, ou simplesmente, melhor dizendo, ou genialmente o Pelé, o rei do futebol. Se fosse possível ter tal confronto, seria uma batalha épica, uma epopeia, digna da Ilíada e da Odisseia. Mas como não é possível tal encontro, deixo a imagem apenas na fotografia do imaginário, visão, esta, atemporal, de todos os tempos: mitológico ou cronológico; antigo, moderno ou hodierno; recente ou imemorial.

Mas vamos deixar de lado considerações idílicas, e voltar a falar dos tempos duros e cinzas do auge do regime militar, época que transcorreu a Copa do Mundo em terras mexicanas. Retomando o fio da meada, todos sabem de cor e salteado o placar daquele jogo, 4 a 1, e que resultou no então tricampeonato mundial brasileiro e na conquista em definitivo da taça Jules Rimet, aquela mesma que 13 anos mais tarde viria a ser roubada e derretida. Porém, o que ninguém sabe, obviamente, é que eu, garoto hiperativo para os padrões comportamentais da época, ao comemorar um gol brasileiro, subi no referido muro e dando um salto, com o punho cerrado, imitando, naturalmente, a consagrada comemoração do Pelé, caí de mau jeito no chão e quebrei o meu braço. Após grito de dor, imediatamente percebido por todos que estavam na casa, hipnotizados diante da nossa antiga TV, que mais parecia um móvel, involucrada por uma caixa de madeira de lei, que continha uma porta de correr sobre trilhos, eis que sobrou para o meu saudoso pai a ingrata e inoportuna tarefa de me conduzir no ato a uma clínica ortopédica. Chegando lá, ainda com o jogo transcorrendo, os médicos imobilizaram o meu braço provisoriamente com uma tala e disseram para papai aguardar o final da partida, para só então avaliarem melhor a extensão do dano e colocarem, se necessário, um gesso, o que realmente acabou acontecendo.

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Vocês, caros leitores, devem estar se perguntando o que um episódio prosaico como esse, ocorrido há quase 5 décadas, derivado de uma peraltice de uma criança, tem de relação com o título deste ensaio. Cabe-me, nas próximas linhas e parágrafos, esclarecer tal dúvida. Vamos, então, a isso.

A fratura do meu braço, mesmo embebida de uma narrativa que tangencia a prosa poética, é episódio verídico, acreditem. Eu Leonardo, de fato, tive tal infortúnio. Mas ela, a narrativa, apenas é um pano de fundo, para abordar uma questão indireta dentro de uma outra tristemente direta e que vocês, logo, logo vão saber.

A procrastinação do atendimento imediato de forma eficaz a uma provável fratura no braço de uma criança com o lustro na idade, expõe uma questão emblemática. Naquele tempo se vivia e respirava intensamente a Copa do Mundo. O hino da seleção de 70, “90 milhões em ação...”, era cantado com paixão, as ruas, casa e os corpos dos torcedores andavam pintados com o colorido das cores da bandeira, e muito mais manifestações de afeto se viam no seio do povo brasileiro, mesmo considerando, o período de chumbo que o país atravessava, mergulhado numa ditadura militar, dentro de um dos governos mais truculentos da história recente, que foi o do General Médici. Isso tudo, a paixão pelo selecionado canarinho, ocorria por uma razão significativa: o sentimento de pertencimento que a seleção conseguia despertar. Apesar da ditadura, tínhamos na seleção de Pelé e companhia refrigério para os momentos tão opressivos que o povo e a sociedade viviam. Essa sensação de pertencimento, ainda se observou com intensidade durante décadas mais à frente. Ganhamos e festejamos mais 2 títulos mundiais (1994 e 2002), lamentamos o vice-campeonato de 1998, questionamos veementemente uma possível armação que beneficiou a Argentina e nos eliminou da Copa em 1978 (quem da minha faixa etária ou superior não se lembra daquele suspeitíssimo 6 a 0 dos Hermanos sobre os peruanos?), sentimos profundamente em 1982 a eliminação precoce da também fantástica seleção de Zico, Falcão, Sócrates e outros craques, dirigida pelo mestre Telê Santana.

Há não muito tempo, uma Copa do Mundo era um evento sagrado, inserida na sacralidade deste esporte que o senso comum e o especializado, chamam de religião. Ruas, avenidas, parques, fachadas de prédios, casas, estabelecimentos comerciais, enfim, tudo era ornado com o verde e o amarelo, sob a forma de tapetes, bandeirinhas ou bandeirolas, faixas, muros e asfalto pintados, enfim tudo o que a criatividade do torcedor pudesse conceber. Dias de jogos da seleção, paralisavam literalmente o país, transformando-o, pelo menos por 90 minutos, numa nação fantasma, na mesma concepção empregada à cidade fantasma dos filmes de faroeste americano, ou seja, sem movimento e com um silêncio ensurdecedor.

Foram tempos pretéritos de uma exacerbação de sentimentos, sincera.

E hoje, nos tempos atuais?

Estamos a menos de 2 semanas do início do evento futebolístico mais importante do planeta, e quase não se fala de forma incisiva no assunto no Brasil. Onde estão as ruas e avenidas enfeitadas? Onde está a referida pertença pela seleção? A resposta está dentro da caverna de um monstro, que atende pelo nome de corrupção. A corrupção desenfreada, crescente e de uns anos para cá institucionalizada no país, tragou e vem tragando e estragando a esperança da nação, repercutindo até, e sobretudo, no futebol. Os 7 a 1, contra a Alemanha, na fatídica semifinal da última copa, justamente aqui em nosso torrão, não foi a razão da debandada de torcedores e do arrefecimento da atmosfera pré-copa. A vergonhosa e inédita goleada sofrida para a seleção bávara configurou-se, sim, numa nefasta consequência, não em uma causa. Foi a Corrupção endêmica e epidêmica que prosperou na Confederação responsável por organizar, administrar e, infelizmente, representar formalmente a nação, no plano futebolístico. Com um ex-presidente desta mesma confederação preso, outro auto aprisionado em seu país para também não ser preso e outro em situação semelhante. O esporte como todo, notadamente o futebol, pela dimensão que ocupa perante os torcedores, é mais um reflexo deste monstro que nós ajudamos a criar, quando o alimentamos com votos não conscientes ou convenientes. A corrupção que vem matando há décadas a saúde, a educação, a segurança pública, a moradia, o saneamento básico, o emprego, a dignidade de um povo cada vez mais humilhado pelos seus governantes, de uns tempos para cá direcionou seus tentáculos também para o futebol, esperando que a passionalidade inerente a este esporte conduzisse o torcedor a um estado de complacência e até de cumplicidade, pela conquista de um título, como se tal conquista representasse um salvo conduto para roubar.

O povo, em geral, já não se sente mais tão motivado para cantarolar nas arquibancadas padrão FIFA de qualidade e roubalheira, o indefectível bordão: “ah, sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”, salvo por um mero impulso momentâneo influenciado pelo inconsciente coletivo. Aliás muitas pessoas em escala crescente se questionam e reagem das mais diversas formas, diante dos efeitos da corrupção sobre uma população cada vez pauperizada. Vale a pena tanta celebração como Carnaval, São João, Olimpíadas, Réveillons, Copa do Mundo, e tantas e tantas festas num pais nunca antes tão expropriado desde que o Cabral, o Pedro Álvares, por aqui desembarcou? Só o povo nas ruas com as cores da sua indignação, munido de genuíno patriotismo, pode dar a devida resposta, reverter este estado de coisas e instaurar uma nova ordem social e moral neste país. Se não queremos que o monstro faminto e insaciável desta deletéria corrupção, também devore o futebol e com ele as suas paixões associadas, incluída, é claro, a torcida pela seleção na Copa do Mundo; se desejamos que o clima predecessor da próxima Copa seja totalmente diferente desta apatia, devemos matar este monstro com a arma do voto, da fiscalização, da denúncia, e das que tiverem ao nosso alcance, sem estimações, pois já não somos mais juvenis para criarmos corruptos de estimação e discutirmos nos pátios dos colégios e da vida que o meu é melhor, ou menos pior do que o seu.

O monstro da corrupção, personificação apropriada dos políticos e demais dirigentes desonestos, não escolhe vítimas, ele devora todas, mesmo aquelas que o elegeram nas urnas e o abrigaram na sua caverna. Não pode existir qualquer tipo de relativização quanto à corrupção e os seus corruptores, independentemente do partido e de seus próceres, ideologia, símbolos, cores de bandeiras políticas, etc.

Se a estrela branca sobre o fundo vermelho, roubou, desviou, cooptou, prevaricou, aliciou, ou coisas do gênero ela tem que ser apagada. Da mesma forma que o tucano infrator também deve ser engaiolado, ou aquela chama vermelha, meliante, deve ser extinta, assim como qualquer outro símbolo, indistintamente.

Eu quero a esperança de volta, eu quero o meu país de volta, eu quero torcer pela seleção na Copa sem nenhum sentimento de culpa ou constrangimento.

Há 48 anos, criança, num arroubo infantil, eu subi em um muro e quebrei um osso do braço. Hoje, adulto e experimentado, não desejo mais subir em muros, pois se assim o fizer, por um ato de omissão ou indiferença, ao ficar em cima do muro, não partirei um osso, fraturarei algo mais valioso, imprescindível: a minha consciência.

Estamos mesmo às vésperas de uma Copa do Mundo?

© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves

03 de junho de 2018

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Leonardo do Eirado
Enviado por Leonardo do Eirado em 04/06/2018
Reeditado em 24/08/2018
Código do texto: T6354894
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