Jesus e a família

Li um artigo interessantíssimo do Contardo Calligaris que falava sobre a Marcha para Jesus e, lá pelas tantas, questionava o uso que os cristãos fazem do conceito de família, o qual seria contrário ao próprio cristianismo original. Ele cita duas passagens dos evangelhos em que Jesus relativiza a importância da família, inclusive a sua, mas há mais.

A família de Jesus eram os seus discípulos e eram as pessoas que paravam para lhe ouvir. É que Jesus e os primeiros cristãos estavam criando um sistema de crenças que era essencialmente novo àquele ambiente e contrário ao que era estabelecido. Ora, uma família tende a ser local de fortalecimento e perpetuação de crenças. Se alguém quer criar algo novo, fatalmente terá, de um jeito ou de outro, de romper com o sistema perpetuado pela própria família.

Esse sistema, na época de Jesus, era representado pelo judaísmo, que realmente dava grande valor à família, o que inclusive era uma forma de sobrevivência das suas crenças – as mesmas que seriam rompidas por Jesus. O sistema de Jesus encorajava a independência em relação à família, sendo, nas palavras de Contardo, “libertário, generoso e cioso da absoluta liberdade do foro íntimo”.

Com essas características, ele fatalmente seria uma ameaça para qualquer poder estabelecido. Ao seguir Jesus na época em que não existiam as igrejas cristãs, os discípulos rompiam com suas famílias e rompiam com a sua igreja, desfazendo assim o círculo de perpetuação de crenças já estabelecidas. A família, nessa visão, seria secundária.

Entretanto, os anos se passaram, os séculos se passaram, o cristianismo cresceu e chegou ao ponto de dominar o império. O que houve então? Passou a valorizar a família como forma de perpetuar a crença cristã. Agora não era mais preciso subverter nada, e sim zelar pela manutenção do sistema de crenças hegemônico. Jesus, de certa forma, passou a ser uma tradição, e não uma descoberta pessoal.

Os movimentos reformistas que sacudiram a Europa obtiveram certo sucesso, inicialmente, em resgatar a origem libertária do movimento cristão, mas também isso foi deixado de lado quando as igrejas derivadas da reforma se estabeleceram. Foi quando também elas procuraram a sua própria perpetuação, o que só seria conseguido pelas famílias.

Vem daí o apego que as atuais igrejas cristãs aqui no Brasil empregam à família: a continuidade do seu sistema de crenças. Por isso tanta coisa é feita “em defesa da família”, sendo que uma leitura simples dos evangelhos já é capaz de revelar que se pode ser cristão sem ter apego à família, e que talvez se seja um cristão até melhor se o conceito de família não for limitado pela constituição dos que habitam o mesmo lar ou dos que compartilham de carga genética semelhante. Não é a essência do que se entende por cristianismo que todos sejam irmãos?

Talvez um dia surja uma nova reforma que procure retornar aos valores originais dessa crença, e então valorize a liberdade de consciência mais do que as crenças que herdamos do berço, mas a História sugere que, uma vez dominante, os herdeiros dessa reforma também usarão a família para perpetuar a sua visão de mundo. Não é fácil viver em revolução permanente.

Frederico Milkau
Enviado por Frederico Milkau em 08/06/2018
Reeditado em 08/06/2018
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