Algumas Memórias do Rio

Pensando bem, o Rio mudou muito. Na minha época de criança, todos carros eram grandes e pretos, uma cor quase padrão. Ford ou Chevrolet, alguns poucos Citroens. O carro do meu pai era cinza com teto branco, “saia e blusa”, como diziam na época, e estofamento cinza. Depois que a pintura foi estragando, meu pai repintou o carro de azul escuro e mudou o estofamento para creme. Nesse carro fomos do Rio ao Recife, na época, uma mini epopéia. Depois que voltamos ao Rio, em 1963, o carro sumiu do cenário: acho que foi vendido em Recife.

A Avenida Atlântica nos anos 50 com duas mãos, bem apertadinha, com os carros grandes com eram. Lembro de seus postes de luz elegantes, acho que pintados de cor metálica para esconder a ferrugem, que não sei quando desapareceram. Antes, a avenida tinha uma ilha central, onde se exibiam os postes com três lâmpadas no formato de tridente. Mas isso eu nunca vi. Pergunto-me em que depósito foram parar ou a que fundição foram vendidos como sucata. A praia era de areia branca, exceto onde desaguava em diversos pontos a canalização, que, suponho, era de águas pluviais, mas onde acabava parando esgoto, uma língua negra que ultrajava o branco da areia. Não era incomum também a acumulação de pixe preto na beira, jogado no mar por navios de passagem, que agarrava no pé e só saía com “Varsol”. Na areia, uma exposição, de pipas de pano, as gaivotas, compondo a paisagem, com o mar azul escuro, espuma branca, e céu azul claro no fundo.

Para quem chegava bem cedo na praia, o arrastão, com todos os peixes que se sacudiam na areia molhada. Bonita cena todos esses pescadores puxando lentamente a rede. Os pescadores vendiam os peixes grandes e entregavam gratuitamente os pequenos. Mesmo os peixes grandes alí eram baratos. Era hora de fazer um bom negócio para o almoço. Não muito longe, para quem estava no Posto 6, o Forte com sua imponente estrutura e seus canhões com o domo metálico. Vez por outra, o estrondo de seus diparos podiam ser ouvidos no bairro, e, alguma vezes, se podia admirar o cogumelo branco de espuma do impacto ao longe mais perto do horizonte.

Acordar meio tarde numa manhã de domingo com o roncar de um T6 sobrevoando meu prédio em Copacabana. É uma demonstração da Esquadrilha da Fumaça e eu estou perdendo o espetáculo. Levantei, vesti rápido um calção, peguei o elevador, sai do edifício do lado da praia e esperei que os aviões voltassem a passar. Tinha a demonstração terminado? Ainda não. A esquadrilha passou num rasante quase sobre a areia, e depois subiu nas alturas, só frequentada por homens destemidos e semideuses. Logo eram só pontinhos no céu azul e o ronco dos motores foi-se distanciando e aos poucos desaparecendo. Só sobrou o espetáculo da luz ofuscante do meio-dia refletida no mar, cor de cobalto, com manchas de prata cintilantes produzidas pelo sol de verão. Mas divertido era a esquadrilha de Gloster Meteor, que fazia um rasante sobre as areias da praia, provocando um deslocamento de ar que jogava as barracas para o alto.

O comércio no Rio era diferente, sem supermercados. Mercearias, bazares, quitandas, padarias, açougues, bares com pernis maravilhosos e ovos cozidos, verde e rosa (cores de Portugal, suponho), tudo praticamente extinto. “Casas Gaio Marti”, e depois as “Casas da Banha” (nome pouco sutil...). Lojas como a “Sloper” , “Lojas Americanas” ,“Sears” , “Mesbla”, “Príncipe”, “Casa José Silva”, “Casa Mattos”, “Masson”, “To-Ne_Luz”, “Rei da Voz”, “Ducal”, livrarias “José Olympio” e“Garnier”, “Modern Sound” e muitas outras. Todas elas distribuídas pela cidade, sobretudo na Avenida Copacabana, que onde exibiam glamour e charme. Nas lojas, podia-se comprar roupas, calçados, tecidos, malas, perfumes, material escolar, livros - muitos livros – discos, vitrolas, televisores, doces, e até manteiga, banha, farinha, feijão, arroz, açúcar, tudo a granel que o vendedor tirava de uma lata enorme ou de um vasto saco de pano. Não havia “shoppings”. Finalmente, mais tarde, apareceram os supermercados, sendo o “Disco” o primeiro, rede criada pelo poeta Augusto Frederico Schmidt. A boa memória de comprar no Bar Bico chiclete “Adams” ou de bola, “Ping-Pong”, "tutti-frutti (rosa) ou hortelã (verde), ou ainda paçoca de amemdoim, ou amendoim japonês. Uma bala de chocolate que comprava na padaria em frente de casa era maravilhosa, embrulhada em papela azul era chamada de “rebuçado”. Mas o dono da padaria era português e depois aprendi que rebuçado é qualquer guloseima embrulhada, ou balinha, em Portugal, e nada a ver com minha bala de caramelo.

O Rio me traz muitas lembranças pessoais muito boas do prazer que se pode extrair de pequenas coisas. Costumava ganhar com frequência quando criança, um bloco de papel de jornal e uma caixa com seis lápis de cores, pequenos. Até hoje sou fascinado por e lápis de cores pequenos numa caixa de seis e blocos de papel. Desde que não sejam pautados, porque dizem que dá azar. Só que os blocos de papel jornal desapareceram por um tempo e agora estão voltando, com a mesma cor, batizados de blocos de papel reciclado.

Lembro também de ir passear minha avó na Av. Copacabana, porque ele sempre me dava um trocado. O passeio era demorado porque ela andava muito devagar. O intinerário era sempre o mesmo, com escalas nas lojas de tecidos, “Casas Pernambucanas” se não me engano, e de doces “Dona Benta”, Confeitaria Colombo e Kopenahgen. Na loja “Chuvisco”, na Rainha Elizabeth, ou “Veronese” (que ainda existe), na Visconde de Pirajá, nós não íamos, mas ela encomendava coisas lá, pois o radar dela tinha grande alcance. Ah! Como eu detestava as lojas de tecido, que não apresentam nenhum atrativo para um adolescente.

Também passeava a Maria, minha Babá depois de idosa, em reversão de papéis, enquanto ela tinha saúde, e mesmo depois de um derrame, em que ficou meio torta pendendo para um lado. Criança era assunto da Babá e, talvez por isso, minha Babá foi a única pessoa que genuinamente amei na minha infância. Íamos até o final do posto seis, olhávamos os barcos dos pescadores, recordávamos os arrastões que havíamos acompanhado, íamos até a Igreja, que era completamente ao ar livre. Depois voltávamos. Fico contente por ela, porque se não fosse assim nunca mais sairia de casa. A Igreja agora mudou para um verdadeiro prédio na Rua Francisco Otaviano e para mim perdeu o charme. Não sei porque Deus tem que mudar de endereço.

Na antiga Igreja da paróquia de Nossa Senhora de Copacabana, minha avó ia com frequência à missa. Mas um dia o Padre disse que o pecado era uma coisa tão ruim, tão ruim quanto a visita inesperada de uma sogra. Aí, nunca mais voltou essa Igreja!

Mil outras lembranças do Rio. Como ir ao Maracanã no domingo, para ver qualquer jogo, mesmo de times mais ou menos fracos. Desde o Posto 6 passava “horas" no ônibus para chegar lá. A idéia era fumar escondido. Para aproveitar o momento, e valorizar o custo benefício, acabava fumando meio maço de cigarros e, francamente, passava o resto do dia meio doente. Lembro bem de um jogo do Bangu, em que o Parada deu um show de bola, e fez um golaço.

Em casa, ouvindo futebol no rádio e tentando imaginar a cena em campo. Ou distraindo com a “Rádio Relógio”, que todo mundo ouvia, ninguém dava importância, mas todo mundo sente saudade. Você sabia?

Ler as crônicas de Carlos Drummond de Andrade em “Fala, Amendoeira” é um grande prazer. São crônicas sim, mas beiram a ficção: a visita a Belo Horizonte de Greta Garbo, ou o fim da praia do Arpoador, que, claro está, não acabou. E a linguagem é poética. Veja um exemplo: ”... as ilhas que mesmo próximas guardam um segredo de solidão...” Ou é de uma grande perspicácia, quando comenta sobre peprsonagem que encontra a porta da repartição fechada em dia de “ponto facultativo: “João pensava saber, mas nesse momento teve a intuição de que o verdadeiro sentido das palavras não está no dicionário; está na vida, no uso que dela fazemos” .

Outra lembrança carioca. Já me aconteceu de andar com um buraco na sola do sapato. Era complicado comprar um sapato novo, precisava pedir aos país, esperar talvez o fim do mês. Mas nem sempre é falta de dinheiro, mas afeição pelo sapato velho. Ou preguiça de reservar um tempo para ir no sapateiro (onde muitas vezes você recebe a informação de que não tem mais conserto). Que fazer, então. Põe um pedaço de cartolina no sapato. Funciona direitinho, até a cartolina gastar. O único problema é quando chove. Você começa logo a sentir a meia molhada.

O que nos faz tristes é ver que as coisas que sobrevivem na nossa memória tem existência efêmera na realidade. A padaria em frente do nosso prédio, as Casas Gaio Marti na esquina da Avenida Copacabana com a Fransciso Sá, e o o bar também na esquina das mesmas duas vias mas do outro lado, nada disso existe mais em concreto. Quando os que ainda se lembram morrerem, deixarão também de existir na memória viva.

Ugly
Enviado por Ugly em 03/08/2018
Reeditado em 04/09/2022
Código do texto: T6408411
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