Diário das minhas leituras/13

01/12/2018 – HORÁCIO QUIROGA

Os personagens da maior parte dos contos de “Anaconda” estão sempre em conflito com as forças da natureza, o que os torna, inclusive, mais humanos do que nós, homens urbanos cuja maior luta contra a natureza se resume a botar uma blusa ou armar um guarda-chuva. O conto-título é bastante original, já que escrito sob a perspectiva das cobras da Amazônia. Há ainda bons momentos como a luta contra o Estado de "Polia louca" e o machadiano conto "Miss Dorothy Philips, minha esposa", que, infelizmente, foi todo estragado pelo final. Fora isso há ainda alguns flertes rápidos com o fantástico.

01/12/2018 – AUGUST STRINDBERG

Ainda sobre o "Casados e Descasados", do August Strindberg, que a L&PM vende mentirosamente como "clássico feminista", encontrei uma referência aos contos desse livro feita há muitos anos por Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai: "Série de episódios matrimoniais relatados com ironia brutal, nos quais se empenha em despojar as relações sexuais de todo halo romântico e em ridicularizar o movimento feminista". E mais adiante: "Quase todas as obras do autor, pela incompreensão, pela solidão, pelo insucesso de três casamentos seguidos, refletem um ódio irracional e incontível à mulher, em quem ele vê o inimigo natural do homem, e que lhe entrava as tentativas de ascensão". Isso está muito mais de acordo com o que eu li. De tudo isso, conclui-se que o erro grosseiro da L&PM (pra não dizer a má-fé) deve ser uma das coisas mais escandalosas do mercado editorial recente.

02/12/2018 – ARTHUR SCHNITZLER

Que história incrível é “O Tenente Gustl”! Como é bem conduzido aquele fluxo de consciência (bem antes do Joyce), como se lê com avidez! E que tipo mais curioso esse tenente Gustl! Lembrou-me de certos personagens russos, notadamente aqueles tipos esquisitos que são personagens do Gógol. Enxergo no conto (que alguns chamam de novela) uma crítica incrível à hipocrisia da sociedade vienense da época e, sobretudo, os militares, o que muito me agrada. Ora, meu trisavô viveu em Viena no tempo em que Arthur era criança. Essa relação com a cidade aumenta meu interesse pelo Schnitzler, que devo ler mais.

02/12/2018 – O. HENRY – AURÉLIO BUARQUE – PAULO RÓNAI

Depois vai parecer implicância, mas vejam o que os organizadores de “Mar de histórias” escrevem em meio à apresentação biográfica de O. Henry: “Certos contos de O. Henry ainda se leem sempre com agrado”. Invertendo a frase, significa o seguinte: “A maioria dos contos de O. Henry não é lida com agrado”. De vez em quando, a dupla difama os escritores que apresenta de tal maneira que a gente fica se perguntando por que diabos decidiram colocar um conto dele na antologia. Mas agora estamos falando do nome de um quilate de O. Henry. Não é o meu contista favorito, longe disso, mas, poxa vida, é um dos escritores mais importantes para o gênero. O que ele fez pelo conto nos Estados Unidos já seria mais do que suficiente para tê-lo em maior consideração. E aí em um livro voltado para o conto o cara é apresentado como um sujeito que tem um ou outro conto que a gente ainda suporta ler. Uma vez que os dois organizadores optaram por fazer uma seleção desequilibrada de contistas, com uns ganhando mais espaço e mais contos do que outros, seria natural que O. Henry, pela importância que teve para o conto, tivesse dois ou três deles. No entanto, há apenas um, e mesmo assim cheio de “apesares” por parte da dupla. O trabalho dessa antologia é digno de muitos elogios, pois oferece um contato inédito com contos e escritores de literaturas do mundo todo, mas eu gostaria que tivessem sido mais objetivos ao comentar.

04/12/2018 – MADÔ MARTINS

Muito agradável de ser ler os contículos escritos por Madô Martins na recém-lançada obra “Pequenice”. São historietas do seu tempo de menina, contadas com tanta graça e evocando tantos instantes bonitos que, como resultado, nós próprios nos lembramos do nosso próprio passado. Acho que isso é uma coisa que todo escritor deve almejar, ou seja, encontrar ressonância no repertório do seu leitor.

04/12/2018 – STEPHEN LEACOCK

Bastante divertidos os dois contos que li desse canadense nascido na Inglaterra (“O destino terrível de Melpomenus Jones” e “A vingança do prestidigitador”). De motes aparentemente comuns, tirados que foram do cotidiano, ele consegue um desenvolvimento notável, prendendo a atenção e fazendo rir. Uma pena que não se ache livros dele por aqui. Mais um daqueles tesouros quase inéditos aos brasileiros.

04/12/2018 – IVAN CANKAR

Chamado por Aurélio Buarque e Paulo Rónai de “o Górki esloveno” (o que já me parece uma excelente propaganda), Ivan Cankar é autor do doloroso conto “A dessétitsa”, sobre um pobre rapazote vivendo em uma espécie de colégio interno e com precoces crises existenciais, até o momento em que recebe uma carta de sua mãe, acompanhada de uma moeda, de certo a última, justamente a tal da “dessétitsa”. Meu Deus, como fazer para que a incrível literatura do mundo inteiro seja publicada aqui neste país?

04/12/2018 – LITERATURA JAPONESA

"Só com reservas se pode aplicar a palavra literatura às produções intelectuais japonesas anteriores a 1868, de tal maneira elas diferem daquelas que nós assim entendemos habitualmente". (Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai).

Essa dupla às vezes me dá nos nervos, pois, no pouco que já conheci da literatura japonesa, encontrei muitos tesouros anteriores a 1868, como o milenar "A princesa que amava insetos" e também Ihara Saikaku, que viveu nos anos 1600 e que chegou a ser apontado, de certo exageradamente, como melhor que o Maupassant. Esses textos são perfeitamente "literatura". Só com preconceito se negaria isso.

05/12/2018 – DÓRIS LESSING

No meu “ano das mulheres”, em 2016, li “O carnê dourado”, da Dóris Lessing. Infelizmente, no entanto, não gostei muito da leitura. A estrutura do romance me incomodou. Se fosse meramente a história de Anna, Molly, Tommy e Richard, talvez eu gostasse mais. Mas houve capítulos para mim absolutamente desinteressantes, como aquele com o grupo comunista no hotel. Não me identifiquei com as mulheres (e o feminismo é um temas do livro) e, muito menos, com os homens. Em compensação, gostei muito da introdução do livro! A autora faz uma espécie de ensaio com ideias bem interessantes sobre educação.

06/12/2018 – MAR DE HISTÓRIAS (VOLUME 8)

É um ótimo volume, esse número 8. Tem, até agora, o melhor início de todos, porque o conto “O tenente Gustl”, do Arthur Schnitzler, é uma das grandes pérolas da literatura de todos os tempos. E na sequência já tem um Thomas Mann com o curioso “Agnus Dei”. Não demora muito e aparece o Anatole France com o expressivo “Putois”. Depois o surpreendente Lafcadio Hearn, que me pareceu uma espécie de Poe greco-japonês. “Diplomacia” é um conto em que se combina um gesto para depois de um homem ser guilhotinado, a exemplo de um conto do Villiers de L'Isle-Adam, só que com um belo toque oriental. Mais para frente, teremos excelentes momentos com Ricarda Huch (“O cantor”), Andreiev (“O grande Slam”), Stephen Leacock (o humorista incrível de “O destino terrível de Melpomenus Jones” e “A vingança do prestidigitador”) e Naoya Shiga (“A morte da mulher do atirador de facas”). Belos contos também dos desconhecidos Ivan Cankar (“A dessétitsa), Jules Lemaître (“Muito tarde”), Ferenc Molnár (“Conto de ninar”), Rafael Barrett (“A mãe” e “A carteira”), Arnold Bennet (“O assasinato do mandarim”), Zygmunt Nidzwiecki (“O dote”) e Johannes Vilhelm Jensen (“Na paz do Natal”). Esse livro tem, provavelmente, a maior quantidade de contos que eu elogiei, entre os oito volumes que já li. Ah, sim, tem ainda um conto do O. Henry, apesar da pouca consideração que os organizadores do livro demonstraram em relação a ele. Há dois brasileiros, o sempre difícil Coelho Neto e mais o Simões Lopes Neto, além de latinos como Javier de Viana e Ernesto Montenegro, e o místico Francis Jammes de “O paraíso”. Um “porém” do livro é o famigerado Strindberg, com um conto, a meu ver, mal escolhido, pois o conto histórico “O império milenar” precisou de 35 notas de rodapé para que a gente tivesse ideia do que é que o escritor estava falando. Se eu quisesse ler contos históricos era uma coisa, mas essa pretende ser uma antologia genérica, e creio que o Strindberg, apesar de toda a misoginia, teria contos mais agradáveis. Também percebi, como disse, um incrível preconceito dos dois organizadores em relação à literatura japonesa antiga. Os dois, em verdade, são muito chatos nos seus comentários introdutórios. Mas a seleção do livro é muito boa e ele vale muito a pena de ser lido.

07/12/2018 – YUVAL NOAH HARARI – SAPIENS

Às vezes calha de eu ler algum best seller, e às vezes o best seller se justifica. É espantosa a lucidez de Yuval Noah Harari ao contar, em “Sapiens”, a história da nossa espécie, chamando as coisas pelos nomes que elas realmente tem, e não por aquelas nobres motivações que sempre atribuímos a tudo o que fazemos. Também há de se destacar o equilíbrio das análises, o que acaba fazendo com que nenhuma conclusão simplista possa ser tirada a respeito de tudo o que fazemos como espécie. A nossa história é a história de nossas contradições, e é preciso boa dose de coragem para expô-la fugindo do senso comum e das muitas “religiões” do nosso tempo. Embora o livro todo seja de leitura muito agradável, gostei, sobretudo, da primeira parte, por meio da qual aprendi mais sobre as espécies de seres humanos que já existiram por aí (coisa que a escola deve ter me ensinado, mas não de uma forma que despertasse o meu interesse). Também são fascinantes as possibilidades aventadas para o nosso futuro, quando, ao que parece, nem seremos mais Homo sapiens.

08/12/2018 – GUILHERME TAUIL

“"Um porco, quando se depara com o espelho pela primeira vez, fica cerca de meia hora tentando interagir com a própria imagem, até se dar conta de que ele não é tudo aquilo que pensava, e desiste. Alguns humanos levam a vida inteira para chegar à mesma conclusão". Essa pérola é do cronista Guilherme Tauil, em texto do livro “Sobreviventes do verão”.

08/12/2018 – CONAN DOYLE – SHERLOCK HOLMES

Reli “As memórias de Sherlock Holmes”, depois de pelo menos uns 15 anos. E, caramba, como são bons esses contos! Sherlock fez parte da minha formação como leitor, mas não se pode, de maneira nenhuma, reduzi-lo a uma mera “etapa na evolução do leitor”. Esses contos continuam sendo excepcionais hoje, mesmo diante de tudo o que li depois deles. A regularidade do Conan Doyle impressiona nos contos do Sherlock. De fato, a maioria dos contos está um nível muito parecido, e é um nível alto. Ele alia de modo muito eficaz narração, diálogo e suspense. E o Sherlock é uma figura e tanto, naturalmente. O jogo com Watson também funciona excepcionalmente. Dos 12 contos dessa seleção, eu elegi como o meu favorito “Os fidalgos de Reigate”. Creio que a maioria prefere “O problema final”, que é o conto em que Sherlock “morre” pelas mãos do professor Moriarty, em uma cena épica. Entretanto, não negando a importância e nem a qualidade desse conto, digo que prefiro “Os fidalgos de Reigate” porque ali o Sherlock está pleno e absoluto em suas investigações como detetive. Ali ele simulou que estava tendo um ataque súbito, ali ele fez de conta que se confundiu em relação a um dado importante da investigação, ali ele derrubou uma garrafa de água e colocou a culpa no Watson (esse, coitado, assistia a tudo aparvalhado) e, como era de se esperar, tudo era devidamente calculado e só ao final o detetive irá relevar os espantosos raciocínios que o levaram a fazer o que fez. Sem falar que, nesse conto, o Sherlock correu risco real de morte. Noto também muitas sacadas bem humoradas do detetive. E tem ainda um bilhete, conto de detetive com bilhete é sempre legal. Outro conto a se destacar é “A face amarela”, um conto em que Sherlock erra em sua investigação e não tem um papel decisivo no deslinde da trama. Aliás, nem há crime na trama, o que, por si só, já é algo que chama a atenção. Mas há ainda peculiaridades interessantes, pois a situação criada na história tem sua razão de ser no racismo existente na sociedade de então, ainda maior que o de hoje. Mas o homem envolvido no caso tem uma atitude nobilíssima e passa por cima desse e de outros preconceitos ao término do conto. De outro conto, “A caixa de papelão”, registro aqui o pensamento filosófico que teve o detetive, depois de desvendar uma trama que envia amor e vingança: “Qual é o significado disto, Watson?” disse Holmes solenemente ao soltar o papel. “Que objetivo é servido por este círculo de desgraça, violência e medo? Isso tem de tender para algum fim, do contrário nosso universo é regido pelo acaso, o que é impensável. Mas que fim? Este é o grande e perene problema de cuja solução a razão humana está tão longe como sempre”. Gostava há mais de 15 anos e continuo gostando.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 09/12/2018
Reeditado em 09/12/2018
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