A suspeita do bom para si mesmo

A suspeita da auto virtude proclamada é algo que se situa, grosso modo, numa tradição filosófica a partir de Santo Agostinho, passando pela Idade Média com autores como Pascal ou os moralistas franceses como Foucault e outros. Trata-se de uma antiga e persistente suspeita de que o indivíduo que externa ou auto proclama suas virtudes é um individuo verdadeiramente vaidoso e mentiroso. Pode-se dizer, a partir dos textos de Platão e Aristóteles, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral tem seu início com Sócrates. Ele costumava percorrer as praças e ruas atenienses perguntando a jovens ou velhos o que eram os valores nos quais acreditavam e aos quais respeitavam ao agir. Assim ele indagava: O que é a coragem? O que é a justiça? O que é piedade? O que é a amizade? E assim por diante. A tais questionamentos os atenienses respondiam serem tais coisas virtudes. Mas o que é a virtude? Tornava Sócrates, ao que estes diziam: agir em conformidade com o bem. Que é o bem? (...).

Sabemos, ou temos uma noção rasa ao menos, de que nossas condutas, ações e comportamentos são moldados pelas condições em que vivemos, a saber: família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho, circunstâncias políticas etc. Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Assim, valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e atemporais. Por eles somos recompensados ou acossados. O embaraço dos atenienses com Sócrates era que eles eram impelidos a indagar qual a origem e essência da coisas que tinham como virtudes. Em última, porém não definitiva, instância: o que eram e o que valiam realmente os costumes que lhes haviam sido ensinados? Em grego costumes é Ethos, donde ética e, em latim, Mores, donde moral. Assim, ética e moral referen-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, com tais, são considerados valores e obrigações para a conduta geral e particular de seus membros. No entanto, a língua grega possui uma outra palavra que, infelizmente, precisa ser escrita, em português, com as mesmas letras que a palavra que significa costume: etmos. Em grego, existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal e: uma vogal breve, chamada epsilon, e uma vogal longa, chamada eta. Ethos, escrita com a vogal longa (ethos com eta), significa costume; porém, escrita com a vogal breve (ethos com epsilon), significa caráter, índole natural, temperamento, conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Nesse segundo sentido, ethos se refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e quais vícios cada um é capaz de praticar. Refere-se, portanto, ao senso moral e à consciência ética individuais.

O que ressalto aqui, porém, para não divagarmos, é a saber, como propunha Sócrates, se ao agirem, os indivíduos possuem efetivamente consciência do significado e da finalidade de suas ações, se seu caráter e sua índole (ethos com epsilon) são realmente virtuosos e bons. Essas questões socráticas inauguram a ética ou filosofia moral. Bem, na história da filosofia moral temos que, geralmente, o outro é juiz de sua própria virtude. Observemos que, se um indivíduo nos diz que é muito honesto provavelmente iremos nos acautelar quanto a nossos bens materiais; ou se nos diz que é muito sincero começaremos a imaginar de que engodos seremos “vítima” por parte deste indivíduo. Em Santo Agostinho o indivíduo que auto proclama suas virtudes o faz fundamentado no orgulho. Aqui cabe dizer que, ainda que pensemos num âmbito de virtudes aristotélicas como vontade racional, deliberação e escolha guiadas pela razão, fica evidente que a virtude é sempre um fato público. Ou, por outra, é sempre o julgamento do outro que nos reconhece naquilo que realmente somos ou deixamos de ser. A sociedade atual tem uma sensibilidade de marketing muito aguçada. Isto engendra nas pessoas um comportamento atomizado e o desejo de que elas comprem a ideia do “bom para si mesmo”, da autoproclamação de virtudes, do “amor-próprio”, do estado de serem “bem resolvidas” e assim por diante. Frases como: “Odeie seu ódio!” tem milhões de curtidas em uma mídia social. E não há, por vezes, motivos reais para se odiar o que quer que seja? Há coisas que precisamos sim odiar e que, se estivermos amando, provavelmente estaremos muito doentes. Há uma fúria tal para “ser” ou parecer ser do “bem” que nos pomos a pensar: se realmente é assim, porque a realidade só nos oferece contemplações de cizânias, agruras, bestialidades, o torpor de sensações excruciantes ou paralisantes? Nelson Rodrigues defendia que só deveria falar de moral, virtudes, quem se soubesse muito pecador, reles e sem valor algum. Isto está de acordo com a descoberta feita pelo personagem de Dostoievsky no conto “Sonho de um homem ridículo”. Conhecedor agudo da natureza humana o autor nos mostra que seu personagem se percebe

responsável, em sua parcela, naquilo que ele critica e até considera execrável. Assim, todos seriamos a “serpente” no mundo, não havendo uma instância superior, inferior, abstrata ou material que nos justifique e a nossa mentira do “bom para si mesmo” e onde consigamos localizar o “mal” aquém de nós mesmos.

Toda a tradição judaico-cristã vem nessa esteira de negar o bom para si mesmo trazendo sempre à tona figuras que tem plena consciência do mal que carregam em si, o que as torna mais propensas a humildade. Portanto, o individuo que se tem como bom para si mesmo falha numa perspectiva básica da virtude, a saber: toda virtude verdadeira é silenciosa e fundamentalmente humilde.

Thais Paloma
Enviado por Thais Paloma em 14/04/2019
Reeditado em 07/07/2019
Código do texto: T6623497
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