A confissão amorosa de Fedra

Uma confissão amorosa seria um problema? Para Fedra, de Racine, foi. Era grave, certamente, na época de Racine, se ocorresse em circunstâncias semelhantes a da peça em questão. À medida, porém, que avançamos e os hábitos mudam, quem garante que o paradoxo de alguém que, em terreno amoroso, não é “nem totalmente culpada, nem totalmente inocente” conserve sua importância? Há muitas especulações quanto sobre a traição de Fedra, sua paixão, seu furor, as quais poderiam encher um tratado muito inaudito sobre como o pensamento masculino fantasia a cerca do que lhes parece um paradoxo do feminino. Veja, é um tipo de olhar que se compraz em visualizar a cena da “falta”, da “traição”, mas edipicamente. Já os elementos masculinos são geralmente os da razão, da razão louca que enceta a degeneração e a obsessão de controle.

Mas, o que vem á tona nesta crítica que tenta solucionar a questão da “confissão” de Fedra? Fedra seria culpada? Vítima de Vênus que lhe teria incutido no íntimo, ou sua alma, uma paixão criminosa? Bem, Racine já define no prefácio da peça que sua heroína é um misto de culpa e inocência, com uma ressonância de uma frase semelhante da Antígona, de Sófocles. Quando Racine opera recortes cirúrgicos sobre os dois textos-fontes de Eurípedes e de Sêneca, Fedra vai perdendo a responsabilidade de seus atos e torna-se quase que indistinta e insubstancial. O resultado, para o público, é o de uma figura única no teatro, cujas atitudes tendem a gerar reações diversas e não raro negativas, sobretudo nos críticos. Hegel, cuja noção de caráter incluía a capacidade de Fedra assumir autonomamente seus atos, criticou-a em seus deslizes pouco voluntariosos e responsáveis.

Em Paul Valéry e Thierry Maulnier encontramos uma Fedra somente passional, eles ressaltam sua paixão como motor puro, sem nenhuma contaminação do espírito. Inclusive, para Maulnier Racine não quer descrever as paixões, mas quer representar o destino humano, colocando-o como um antípoda da arte realista. Essa paixão que avassala Fedra anula de modo absoluto todas as outras formas particulares, anulando mesmo a possibilidade do caráter diante de tal sentimento, e aqui estamos chegando aos tempos hodiernos e entenderão o que digo. Em oposição a isso, Maulnier supõe um tempo anterior ao tempo trágico onde Fedra é despojada de sua dimensão “pessoal” no instante em que se inicia a jornada trágica O momento supremo, associado ao momento da paixão, da simplificação máxima, opõe-se à noção de personalidade e de caráter como determinação particular do indivíduo. Essa sujeição do caráter ao instante trágico é a confirmação do destino como inexorável e, também, da própria fatalidade. É nessa substituição radical que convém incluir o psicológico “particular”, que encontra seu lugar na concepção de espírito como a região superficial do cálculo e da verve. Maulnier afirma a natureza fatal da tragédia raciniana, recusando-lhe, ao mesmo tempo, quaisquer traços “caracteriológicos” que possam “distrair” o curso fatal e necessário da ação. Em Valéry, é o próprio psicológico particular – do espírito – que é associado à esfera do caráter. A noção de paixão como ímpeto irrefletido é excludente de “espírito” como faculdade pensante: ela se contrapõe ao espírito, ao cálculo como se nenhuma dessas faculdades pudesse funcionar conjuntamente com a paixão. Ao mesmo tempo, a afirmação de que a paixão de Fedra é pura levaria a pensar, em última instância, em um fatalismo da paixão como em Maulnier. É a noção forte de fatalidade que é rejeitada por Scherer. Em Racine, que teria reservado a possibilidade de uma explicação racional, total ou parcial, Fedra ocupa uma posição única. A aparição do monstro, no final, ou melhor, o relato da aparição do monstro, revela, mesmo que se leve a explicação racionalista ao seu limite último, que se trata de uma peça excepcional no sentido que, segundo Scherer, dá ao sobrenatural um lugar autêntico. Em Fedra, contudo, a contingência tem um papel real na ação, que se inscreve evidentemente contra o reino da fatalidade. Daí, o suicídio de Fedra não é fatalidade, mas desenvolvimento imprevisível para o início de cada tragédia, causado por ações e reações. A liberdade da personagem está, desse modo, implicada em seu próprio discurso, especialmente em seu discurso fatalista. Finalmente, a liberdade deve estar implicada, uma vez que para ser culpado, é preciso ter podido não sê-lo e ter tido a ocasião de escolher livremente entre fazer ou não fazer o ato reprovado. Ora, a personagem de Racine tem o sentimento agudo de sua responsabilidade; ela condena-se, julga-se, e a punição raramente não chega para coroar esse processo de responsabilização. Assim, Fedra tortura-se por escrúpulos morais. É por tais iniciativas que a personagem afirma sua liberdade. Scherer defende a noção de liberdade como fidelidade a si mesmo e como negação da escravidão. O termo que Scherer emprega é “alienação”. A personagem raciniana “aliena” a sua liberdade: trai a si mesma, trai a pessoa que crê amar e trai a humanidade inteira! Prende-se pelos seus próprios

atos aos ferros, alienando sua liberdade. O caminho percorrido por Scherer unifica, num único problema, o amor e a paixão responsável pela alienação da personagem. Esta é livre para fugir a esse amor, mas não pode, não tem o poder de fazê-lo, permitindo, assim, ser alienada de si mesma. No modo como Scherer interpreta as relações entre liberdade, escravidão e fatalidade há certa rigidez conceitual. Sua negação da fatalidade levou-o a tomar o amor como inteiramente negativo, interpretando o teatro de Racine em termos de uma luta entre a vontade moral (dever) e o desejo íntimo. Fedra é a própria anunciadora de sua condição fatal. Ora, se ela é livre, há algo errado naquilo que ela diz. Se os deuses não existem como agentes da fatalidade e se a existência da fatalidade é impossibilitada pela evidente liberdade dos personagens, resta saber o que fazer com o discurso da fatalidade enunciado por Fedra. A solução é a tese do que ele chama de “trágico da fabulação”, onde a pessoa não suporta contemplar a imagem de sua escravidão voluntária e recorre a um trágico da fabulação. Logo, não é mais a personagem ou sua fala e sim uma potência sobrenatural. Eis toda a fatalidade explicada como uma ficção do espírito do personagem. É essa fabulação que cria uma “paisagem” plena de ressonância poética e que daria o estofo estético da peça. Os deuses desencadeadores da fatalidade existem somente na “imaginação” da vítima. Scherer conclui que, por esse recurso, a alienação que poderia ser o último inimigo da fatalidade termina paradoxalmente salvando-a, de modo que reserva ao trágico no universo raciniano um lugar menos simplista que queriam os críticos fatalista. Scherer, que no seu prefácio declara-se avesso às interpretações psicanalíticas, não deixa em alguns momentos de fazer uso de concepções típicas da psicanálise. Mesmo mantendose fiel à sua concepção formalista de “cerimônia trágica”, o crítico é levado amiúde a usar de noções hermenêuticas de caráter psicanalítico. O personagem recorre ao trágico da fabulação porque é, segundo Scherer, incapaz de olhar-se de frente. Picard rejeita o fatalismo tanto o “biológico” como o “divino”, convencido de que tal causação dissolveria a personagem e empobreceria a peça. Tanto o fatum exterior como o fatum interiorizado não servem para explicar uma personagem que deve desfrutar de alguma liberdade, sob pena de se tornar uma simples marionete dos deuses. Há aqui, mais uma vez, uma equivalência entre maldição divina e fatalidade inexorável. Picard não oferece uma definição positiva da liberdade na peça, mas prefere sublinhar a oposição recíproca entre liberdade e fatalismo cego, concluindo em favor de um drama “psicológico” alegando que, se prestarmos bem atenção, a marcha infernal de Fedra se explica por razões inteiramente psicológicas e que não têm nada de sobrenatural. Essa conclusão, embora também possa ser tirada da observação da peça, é aqui a conseqüência lógica da refutação da tese da fatalidade. Toda a ação em Phèdre origina-se em Fedra, e toda a ação dessa heroína encontra supostamente sua origem na sua interioridade: tal é a seqüência de indagações e respostas que leva ao estabelecimento da tese psicológica. Todo o conflito que interessa na peça encontra-se estruturado, já de início, no interior de Fedra, ao passo que todo o restante, o exterior, só passa a movimentar-se no momento em que a própria heroína passa do pensamento à ação discursiva.

A meu ver, era preciso dar conta dessa duplicidade da “paixão” de Fedra e diferenciá-la da paixão “pura” para mostrar sua natureza particular. Não há obviamente em Fedra o “domínio” da paixão como se costuma apontar no personagem corneilleano tipificado. Se, em Cinna, de Corneille, vemos uma personagem como Émilie revelar seu ódio e, logo após, dominá-lo, em Racine o que se vislumbra não é simplesmente um personagem cujas paixões o dominam de modo avassalador. A paixão transforma-se em ardil e disfarce e assim se volta contra o próprio ardiloso. A formulação de Picard, segundo a qual Fedra é “ingenuamente hábil” corresponde não só à idéia que emana do modo de ela agir, mas do próprio modo como os contemporâneos de Racine concebiam as relações entre espírito e coração. Fedra trilha seu caminho através das mais rigorosas representações da culpa, utilizando-as para seus próprios fins. Se Fedra é, realmente, “nem totalmente culpada, nem totalmente inocente”, como escreve Racine em seu prefácio, não é apenas por estar possuída furor de Vênus, mas antes porque nela a mais sábia arte do espírito – o artifício mais sutil que associamos geralmente à premeditação e ao crime mais culpável – aparece como manipulado sutilmente pela mão delicada da paixão que pensa. O que se preserva com essa interpretação não é o espírito na sua acepção negativa, tal como o descreve Valéry na passagem já analisada, mas o simples instrumento da paixão. Como instrumento ele se preserva intacto, atuante, explicando de modo mais positivo a “fabulação ativa” de Fedra.

Thais Paloma
Enviado por Thais Paloma em 14/04/2019
Reeditado em 07/07/2019
Código do texto: T6623501
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