Homofobia, ressentimento e distribuição do gozo

Na impossibilidade de a natureza dar aos seres humanos uma natureza imutável, esta lhes dotou do mecanismo de identificação através do qual aprendem a agir, a pensar, a sentir e a desejar segundo modalidades construídas historicamente pelo grupo. O Outro como lugar simbólico é o nome que se dá a um modelo como formação social de caráter disciplinar que incide sobre o corpo. Identificações sem força para se impor não são identificações. Isso não quer dizer que o sujeito sempre se identifique com os parâmetros estabelecidos pela sociedade. Os corpos resistem aos processos mediante os quais são interpelados e construídos, conforme assinalou Judith Butler.

Em sociedades heterossexistas nas quais as sexualidades não-heterossexuais são vistas e tratadas como anormais ou inferiores, prevalece-se a ideia de que há dois sexos biológicos (macho e fêmea), dois gêneros (masculino e feminino) e duas orientações sexuais (heterossexual e homossexual), sendo o primeiro polo da dicotomia considerado superior em relação ao seu oposto inferior. Pode-se chamar de abjeto o lugar social da hostilidade, do desprezo e da desconsideração. O binarismo no qual a compreensão ocidental de sexualidade está ancorada estabelece os limites acerca do identificável: ou serás heterossexual ou não serás.

A identificação que produz heterossexuais é uma identificação melancólica, já que a melancolia é, segundo a tradição psicanalítica, uma maneira de lidar com a perda de objeto investido libidinalmente na qual o sujeito, ao renunciar o objeto, se identifica com ele como forma de mantê-lo. O menino que se identifica com o pai o faz porque ele foi primeiramente um objeto satisfação libidinal e, é claro, porque as identificações são práticas disciplinares. Para se tornar heterossexual, o menino abre mão da satisfação libidinal com o pai para ser como ele, internalizando a proibição. Ou, pra dizê-lo com Judith Butler, a heterossexualidade se estabiliza pelo repúdio ou pela renúncia de apegos homossexuais da infância; no entanto, a “renúncia não suprime o instinto: ela se utiliza dele para seus propósitos, de modo que a proibição e a experiência vivida da proibição como uma renúncia repetida são alimentadas precisamente pelo instinto renunciado”.

A heterossexualidade depende da internalização da proibição da homossexualidade. No entanto, como as identificações nunca são totalmente estáveis ou acabadas, o sujeito necessita reiterá-la a partir de rituais e práticas que criarão o efeito retroativo de uma identidade heterossexual. O ódio a gays é, na verdade, uma autocensura projetada para o exterior como forma de garantir a estabilidade da heterossexualidade pelo repúdio dos apegos homossexuais. Ou, para dizê-lo de outra forma, a heterossexualidade só se estabiliza pela reiteração forçada da proibição da homossexualidade e, por essa razão, esta última aparece como ameaça.

Muitas culturas veem aqueles que praticam sexo com pessoas do mesmo sexo como reunindo os espíritos masculinos e femininos. É como se o gozo homossexual fosse a somatória do gozo masculino e feminino. No entanto, nessas culturas, isso não assume um sentido degradante como na cultura ocidental. Em culturas heterossexistas como a nossa, o homossexual é tido como um estrangeiro, aquele que transgrediu a proibição e que, portanto, supostamente goza um gozo que está barrado ao heterossexual. O homossexual seria uma espécie de “ladrão” de gozo.

Se o gozo masculino heterossexual é fálico no sentido de que este estabelece limites ao próprio gozo, barrando o acesso a um gozo absoluto e ilimitado, então pode-se dizer que certo ressentimento é sempre possível em relação ao gozo homossexual tido como gozo da transgressão. Talvez muitos não concordem com o uso um tanto livre da psicanálise, mas o que isso torna possível visualizar é que o endereçamento de ódio a gays tem a ver com um ódio em relação a não poder vivenciar um gozo transgressor que imaginariamente é atribuído a homossexuais.

O ressentimento tende a surgir de uma situação em que o indivíduo busca restaurar seu narcisismo ferido. O heterossexual que discrimina gays provavelmente tem baixa autoestima e sua agressão tem a ver com o desejo de vingança de um ego ferido por imaginariamente supor que o homossexual é um “ladrão” de gozo. O ressentido demanda, se queixa e faz exigências por se sentir injustiçado. No plano da reivindicação de direitos, a homofobia se desdobra num discurso bastante comum de que gays querem privilégios, reiterando a presunção de que o heterossexual contrário à cidadania homossexual expressa uma justiça reivindicatória contra o excesso de gozo supostamente dado a outro.