O buraco no meio do quarto

O BURACO NO MEIO DO QUARTO

CENA I

(Quarto simples com uma luz escura focada no centro; uma escrivaninha de madeira com uma muda de Espada de São Jorge e papéis em branco junto com canetas; outra cadeira no canto esquerdo e no direito; um colchonete no chão esquerdo; um grande buraco no centro do quarto oscilando com a luz escura. A cena começa com o personagem recepcionando o público).

- (Empolgado ao som de vibrações de planetas) Entrem, entrem todas, todes e todos vocês que se perdem em quartos pequenos. (Entusiasmado anda alegremente pelo quarto ainda recepcionando a plateia).

- Olha quanta gente! Não enxergo nada, mas peço que tenham deixado todos os seus pedaços e esperanças na porta. Aqui, tudo vai estar incompleto.

- Cada buraco do seu corpo irá ganhar mais um vazio e se perder - ou talvez se achar - dentro dos seus miúdos quartos.

- Peço que entrem e esqueçam seus rostos. Peço que não lembrem o que vocês são e também que esqueçam de onde vieram e para onde vão.

- O sentido aqui se ganha e também se perde. (Aparte) Brincamos com os dois.

- Como disse, aqui seus buracos vão ganhar formatos e logo depois… Vida!

(Olha a todos sem direção nenhuma enquanto anda pelo quarto. Para na frente do buraco.)

- Temos visitas e estão todos nos olhando. Vou apresentar uma pouco quase nada sobre você. (Fala calmo e docemente olhando o buraco).

- Até porque (Sussurrando para ele) de tudo fugimos e já esquecemos. (Para o público) Esse buraco não é seu amigo, mas está aqui, na minha frente mais quente que o sol e mesmo assim me queima feito gelo.

- Esse quarto, além de uma mente, é um portal para outras e várias emoções.

- Por que eu vou ser só eu mesmo enquanto posso ser milhares? Sentir todas as coisas, todos os impulsos e todas as sensações. (Vira-se para o buraco) Bom, se você não me consumir por inteiro. Não é mesmo?

- Devo lhe apresentar e o comparar a um… A um meteoro, para que te lembres o tamanho do seu efeito e de quão devastador você pode ser.

- (Andando ansioso por todo o quarto. Calmamente chega à escrivaninha; assobia apaixonado e escreve).

- Ai, ai, ai. Quem dera fosse tão fácil começar como todo mundo faz na vida. Não vou me comparar com ninguém novamente… Não, mas confesso que fica impossível para mim manter um foco ou uma concentração sentindo esse vazio tão de perto. Fico mudo ao gritar e me congelo quando deveria estar pegando fogo. (Levanta da cadeira endurecido e abafa um grito. Em um explícito silêncio e em uma curta pausa grita sem dizer nada) O que você quer que eu faça? (Amassa e joga o papel no chão e levanta agitado, anda apressado pelo quarto, volta a se sentar na cadeira do lado direito virado contra o público).

- Até porque, eu, eu...

TABACARIA

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.//

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.//

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.//

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.

(Quarto escurece ao som de trovão).

CENA II

(Ainda ao som de trovoadas o quarto é iluminado ao se levantar e acender velas).

- Não consigo, não consigo, não consigo... Estou preso aqui dentro e vou está preso caso resolva sair também. E é assim que devo começar, não é? Trancafiado e sufocado, preso e estagnado. Sentindo com tamanha força o peso de uma liberdade.

- Mas não, não sei mais de nada. Comigo nada disso vai colar. (Falando consigo mesmo) Irei voltar ao que estava fazendo e acabar de escrever o que ainda estava escrevendo. É certo que esse quarto só tem lugar para um, mas você também sabe que não são somente dois de nós que habitam aqui. (Com medo enquanto anda pelo quarto).

- Vejo que até sobram espaços. Mesmo assim, não recebo nenhum estímulo para querer continuar sem nenhuma noção do que pode acontecer.

- Você simplesmente vai ficar aí... Mas hoje, hoje vejo que está maior do que antes. Deve ser normal. Eu até que devo lidar bem com você, não é mesmo?

- Isso quando não chego muito perto e me toca as entranhas e vem com isso aquela vontade de esquecer e de largar tudo.

- Talvez só ele me entenda ou talvez só nele eu me entenda. Quem vai saber?

- Confesso que algumas vezes queria que isso não estivesse ali. Poderia está ocupado com tantas outras coisas; poderia colocar no lugar uma grande mesa ou só mais um tapete… Poderia ser até uma pessoa. Mas não, esse buraco vazio me entope as vísceras de frieza.

- Mesmo reclamando, me queixando… Ainda vou o preferir desse jeito. Não sei o que é, talvez com um vazio eu me sinta completo.

- Além disso, sinto que pode ser um chamado… Eu sei, estou delirando. Talvez esse buraco esteja ali pra me deixar louco. Para pregar uma peça ou só me lembrar de uma finitude que se aproxima a cada dia.

- Ai, não. Devo estar realmente enlouquecendo.

- (Aparte) Ou talvez, talvez... Deve estar aí para me fazer lembrar de qualquer coisa mesmo. Alguém que eu já devo ter esquecido, um sentimento que pode beirar a cólera ou ao perigo ou só a certeza de que nada pode ser permanentemente mantido. Sempre irei carregar comigo essa sensação de vazio. Mas ora só "orvalhos assim devem cair com o vento" é tudo o que vem na minha mente.

- Talvez agora não exista nada com que deva me preocupar. Mas pensando no futuro… Eu não sei o que achar.

- (Volta a sentar na cadeira) Talvez meu buraco queira falar.... (Sentado declama).

DITO POR NÃO DITO FICA

retorno sem retornar, parto

chego sem saber e falo

no mesmo instante mudo!...

Loucura — parto e fico!...

vou e não vou

sou e não sou

O real é puro sonho

puro — enrolado

forte manipulado

o fraco dominador

de nossa herança

contra-senso e paradoxo.

- (Se assusta e levanta) Chega disso! Vou voltar para a velha estagnação do outro lado do quarto e me fechar ao ponto de estragar qualquer sentimento de vazio.

(Escurece e agora deitado no colchão ainda ao som de chuva e cochichos fala apreensivo)

- Levantarei porque ouço vozes. Sei que fora do meu quarto chove, mas mesmo assim não deixo de ouvir ruídos. E ouço tudo o que me dizem. Ele fala comigo - é claro, mas posso dizer que esse barulho é meu amigo. Só pode ser ou… Ou então, nada disso faz mais sentido.

- Não, não, não. Isso deveria estar dando certo.

- (Aparte) E por que não está? Sinto que esse quarto aos poucos irá me sufocar. E me pergunto o porquê, ao troco de quê e pensando no quê… Como tudo isso pode ocorrer?

- (Fala para si mesmo enquanto levanta da cama e vai para outro lado do quarto) Mas é inútil me perguntar os porquês.

- (Aparte) Não apareça fazendo mais perguntas. Já tenho a resposta para toda, mas nenhuma pronta para mim.

(Volta a se deitar no colchonete)

CENA III

- (O tempo passa pela janela, já é sentido que é noite. Ainda deitado) Eu quero sentir frio, me congelar feita gelo, mas por dentro eu só queimo... Talvez eu faça um macarrão com alho e óleo. Vou me sentir mais satisfeito. Também posso colocar cebolas e coentro.

- Mas não há nada que eu coma capaz de tapar esse vazio que me consome por dentro e faz com que, mesmo saciado, queira devorar tudo e todos a minha frente.

- (Levantando) Mas mesmo com a barriga farta ainda vou continuar com medo. E sabe do quê?

- Medo desse buraco não ser somente um. Talvez existam vários - de formas, profundidades e até cheiros diferentes.

- E se eu estiver certo, ele é mais profundo do que penso. Mesmo assim, não quero expor para todo mundo.

- O que vocês viram não chega nem a um terço da profundidade desse buraco.

- Posso tentar esconder, mas, mas...

- (Aparte) Mas é impossível, não é mesmo? Estará na minha cara, vou deixar explícito o tamanho do buraco que carrego. Convivo com ele todos os dias e é deprimente tentar esconder o que sinto, o que finjo ou onde escondo.

- Mesmo gritando, ainda vou continuar paralisado e completamente mudo. Você sabe que não tenho nenhuma roupa seca. A noite começou chovendo e deixei sobre o céu todas as roupas, todos os sentimentos e tudo o que guardei e se formou com esperança e logo sem ânsia desbotou com amargura e tristeza.

- Também não plantei nenhum remédio, nenhuma cura. Fiz de pensamentos suicidas pontes capazes de me ligar a um estado em que em que estou completamente completo. Mas esqueço o meu vazio no sereno de um céu aberto.

- Coloquei tudo o que tinha para molhar na chuva. E ela saiu encharcando tudo, perdendo todo o sentido que um dia possuía.

- Agora me vejo preso e ao mesmo tempo sinto uma tamanha liberdade que não me julgo são se nesse quarto eu escolher permanecer. (Vira-se para o buraco, se agacha no chão e em tom de despedida fala consigo mesmo).

- Mas eu não escolho nada. Não digo nada. Não penso mais em nada.

- E mesmo que lute contra, desse quarto não vou conseguir sair. Irei tentar, mas sem nenhuma perspectiva continuarei aqui.

- E se for para ser assim, me pergunto. (Aparte) Cada um preso dentro do seu próprio quarto, sentindo o seu próprio cheiro, rasgando a sua própria casca e sem nenhum domínio do seu próprio corpo, sem controle do seu próprio vômito e sentindo todos os sentimentos que existem…

- E se for para ser assim. Sem domínio, sem vontade, sem ânimo e ainda preso aqui.

- Não, não quero dizer mais nada. A cada palavra que digo, esse buraco aumenta de tamanho. E ainda quero ter espaço para pisar.

- E é isso, ainda quero ter chão.

- Se esse buraco não aumentar de tamanho ao ponto de me engolir por inteiro ainda terei condições para respirar, para continuar vivo. Condições de sonhar mais um sonho possível. (Silêncios).

- (Volta-se ao buraco e canta)

Sonhar

Mais um sonho impossível

Lutar

Quando é fácil ceder

Vencer

O inimigo invencível

Negar

Quando a regra é vender

Sofrer

A tortura implacável

Romper

A incabível prisão

Voar

Num limite improvável

Tocar

O inacessível chão

É minha lei, é minha questão

Virar esse mundo

Cravar esse chão

Não me importa saber

Se é terrível demais

Quantas guerras terei que vencer

Por um pouco de paz

E amanhã, se esse chão que eu beijei

For meu leito e perdão

Vou saber que valeu delirar

E morrer de paixão

E assim, seja lá como for

Vai ter fim a infinita aflição

E o mundo vai ver uma flor

Brotar do impossível chão.

- (Se empolga e expressa uma imensa felicidade ao tempo que fica contendo o riso) E é isso tudo o que eu quero: te preencher com um brilho. Um brilho capaz de tapar o vazio ao mesmo tempo que saboreio este sentimento lúdico e com um imenso ar frio.

FIM

iaGovinda
Enviado por iaGovinda em 17/03/2020
Reeditado em 17/03/2020
Código do texto: T6889844
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