ENSAIO MAIS OU MENOS FICCIONAL SOBRE A MECÂNICA DO LAGAR (meu novo livro em processo)

Um inspetor veio ao lagar, tinha ordem de avaliar o funcionamento da máquina e também o desempenho dos operários nessa oficina doméstica, o processamento da safra e a qualidade dos produtos.

Depois de receber tal avaliação, resolvi responder os apontamentos sobre o trabalho nessa pequena fábrica não me desculpando mas, como criador, assumir responsabilidades fazendo longa análise do discurso daquele inspetor e revelar a máquina que nos tritura igualmente a todos.

O inspetor disse em tom miliciano mal educado disfarçado de “quero seu bem, mas fiquei surpreso e incomodado em certos momentos da vistoria". Ótimo. Esse era o objetivo e deveria ser o efeito da leitura em quem pisar o lagar: incomodar, desalojar, alentar os desesperados, penetrar a mente e produzir reflexão como antídoto - assim a manufatura do lagar foi planejada, lugar idealizado em que as mãos do opressor não triture a voz da poesia.

Caro inspetor, você diz que em diversos momentos sentiu que eu queria impor minha opinião - bem, é isso o que faz quem tem opinião: se expressa. Agora, se a obra foi percebida como opressora isso diz mais da sua percepção das partes que do conjunto que, ao que parece, surtiu efeito esperado e gerou da mesma fonte cínica o incômodo libertário.

Na mecânica do lagar, enquanto a moenda mastiga narrativas eu coleto histórias. Segundo a psicologia comportamental, hoje existem métodos muito eficientes que espremem a cabeça dos jovens e meu olhar que você chama de opinião não é fundamentado no egocentrismo como a sua reação, esperada - a obra que transformei em performance tem a intenção de provocar que esteja confortavelmente entorpecido impedido de absorver o impacto da ideia no fluxo narrativo.

Segundo sua opinião, caro inspetor, em diversos momentos estive ausente. Eu vi as personagens que criei de perto e por dentro, tirei delas as máscaras que usavam no intuito de parecerem ‘normais’ talvez em busca de proteção e dei-lhes voz. Devo dizer que também fiquei incomodado de estar do seu lado, inspetor, em meio a multidão barulhenta, incomodado com a insensibilidade, estampa de alegria deprimente, em que sua “geração insfluencer decadente” se perde. Justamente para romper esse véu, virei do avesso a superfície da linguagem e se perfurei o vazio que dá no indivíduo falsa sensação de pertencimento me dou por satisfeito.

Em sua avaliação do labor no lagar, a forma deve ser descontraída e saudável: me pergunto o que ‘saudável’ tem a ver com ‘poesia’. Responder de forma honesta a essa pergunta seria um passo interessante para iniciar nova leitura do pisado. Qualificar qualquer poesia como ‘doença’ adjetivando ‘leitura’ em termos morais mora grande perigo.

Na sua avaliação, garantir que uma discussão seja “saudável” só pode ser alcançado se todos tiverem a mesma opinião ou a expressassem de forma a não ferir ‘o juízo dos homens e mulheres saudáveis’ - mas esse juízo parece perturbado na essência da razão: ao tentar assegurar a uniformidade rasa esvaziada de ideologias, sua visão distorcida, no ato mesmo do próprio conflito, maltrata não só a poesia mas todo o labor no lagar. Vejo em seus parâmetros o reflexo de políticas nefastas para a educação que pretendem tirar as últimas esperanças dos jovens, disfuncionais por sua natureza em formação, desclassificando conhecimento como ferramenta de análise, interpretação e reflexão crítica.

Um exemplo do que eu disse acima é o trecho do seu relatório: “outro ponto é a política, quando decidimos permitir o funcionamento do lagar colocamos como prioridade que as questões políticas seriam neutras porque são particulares” – não seja ingênuo porque o leitor não é! Não existe neutralidade nos paradigmas e quem pensa assim está apenas fugindo da maturidade, destino final do fruto exprimido nessa pequena oficina. Se, como diz o caro inspetor, “cada um pensa de uma forma e temos de respeitar isso”, contraponho: respeitar a opinião alheia não significa relativizar a verdade e deixar de debater, essa fuga de efeito placebo é inócua e não provoca mudanças nem abre nossas mentes para novas circunstâncias.

Dizer que fora do lagar pisado poesia é isto ou aquilo, é um atestado de alienação. Repito que fiquei muitíssimo incomodado quando percebi que seu relatório é uma brincadeira, um simulacro escolar onde trocar de função é passatempo: agora eu sou a diretora, agora sou coordenador pedagógico, agora sou professora – que chato encontrar no seu relatório essa proposta infantil: dentro das instituições escolares, a mecânica quebrada não funciona repetindo padrões gastos.

Se o nobre inspetor ficou decepcionado no lagar pisado, não posso dizer o mesmo. Eu esperava resultados da minha provocação. Sou provocador em tudo que faço, e gosto. Não me abstenho quando o assunto é o que mais amo – o labor no lagar! Preparei cada cena me dirigindo a quem usa a linguagem para fazer da massacrante força que nos oprime bom vinho nesse lagar pisado.

No seu derradeiro ato cínico, detecto um atentado contra o fazer poético; o ilustre inspetor incluiu um pedido de desculpa por ter denunciado ‘tudo isso’ – hipócrita! É próprio do discurso em voga dos que pensam existir lugar neutro na matéria EXPRESSÃO E LINGUAGEM dizer que espera “sem maldade, de coração” que o meu próximo livro seja diferente, isso é pedir que outra pessoa o escreva, e esse não seria eu.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 03/04/2020
Código do texto: T6905432
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