Todos podem fazer filosofia? Filosofar?

No filme Pretty Woman (1990), de Garry Marshall, Vivian Ward (Julia Roberts) é a protagonista e, em umas das cenas iniciais do filme, em uma conversar com seu par romântico Edward Lewis (Richard Gere), após interpelação deste dizendo que muito poucas pessoas o surpreendiam, ela responde: “Tem sorte! A maioria consegue me chocar sempre.”

Nesse pequeno diálogo deparamo-nos com uma conceituação muito comum do que seja a filosofia e o filosofar, a saber: a filosofia seria sempre manter esse senso de novo, de diferente, de choque com a realidade e tudo que ela nos traz. Nesta perspectiva a filosofia nos apareceria como algo que exige certo esforço pois, em um mundo onde os acontecimentos e pessoas são facilmente sucedidos por outros e outros, estamos sempre há um passo de cairmos na banalização e na postura de que tudo é natural, relembrando o que Brecht dizia: “Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual...não aceiteis o que é hábito como coisa natural”.

Será isto, então, a filosofia? Muitos dirão que a filosofia é, ainda, uma forma de vida, donde teremos as filosofias de vida, que se constituem de dar sentido as coisas, eleger critérios para a nossa vida, isto é assim porque, para Gramsci, todo homem é uma espécie de filósofo, posto que não se pode pensar em nenhum homem que não pense, porque pensar é próprio do homem como tal (GRAMSCI, 1978: 44).

Então, as questões filosóficas não só deveriam nos chocar, no sentido que vimos no início, de não nos deixar imperturbáveis e indiferentes, mas também fazer parte do nosso cotidiano, por sermos aptos a pensar sobre as coisas.

Quando falamos em cotidiano, nos vem mais um sentido para a filosofia. Ora, em geral, as coisas do cotidiano nos são familiares, discerníveis e até simples. Então, parece-nos, que a filosofia deve ser, também, algo simples.

“...Um movimento filosófico só merece este nome na medida em que...no trabalho de elaboração de um pensamento superior ao senso comum e cientificamente coerente, jamais se esqueça de permanecer em contato com o simples e, melhor dizendo, encontra nesse contato a fonte dos problemas que devem ser estudados e resolvidos...” (GRAMSCI, 1981:18).

Por ser algo simples, a filosofia partirá de um senso comum, de um cotidiano, seus elementos, desdobramentos e, posteriormente, tentará criticá-lo, ou seja, torna-lo crítico.

Nos dicionários temos, em geral, uma definição de filosofia que a coloca como um procedimento sábio e reflexivo dos filósofos. Ora, se os filósofos somos todos nós que não deixamos de nos chocar com as coisas do cotidiano, teremos que a filosofia está muito próxima da vida e do cotidiano, desfazendo a imagem de seres que estão a parte e apáticos ao mundo, distantes do dia a dia, do concreto, como sendo os que se ocupam da filosofia. Para Marx, esse processo que forma os “filósofos” é o mesmo que forma todos os homens, pois é seu mundo material que lhe dá condições para que ele não apenas pense mas interfira na realidade por meio do que pensa, transpondo isso em ações.

“...os filósofos não brotam da terra como cogumelos, eles são o fruto da sua época, do seu povo, cujas energias, tanto as mais sutis e preciosas, como as mais visíveis, se exprimem nas ideias filosóficas. O espírito que constrói os sistemas filosóficos nos cérebros dos filósofos é o mesmo que constrói os caminhos de ferro com as mãos dos trabalhadores. A filosofia não é exterior ao mundo...” (MARX, 1990 : 14).

Mas será que só o ato de pensar, como indicou Gramsci, nos faz filósofos? Certamente que não! Vejamos.

Aristóteles disse ser a função da filosofia a investigação das causas e princípios, ou seja, o refletir do homem sobre os princípios de nossa existência e realidade total tornava o homem “filósofo”, amigo do saber. Então, não nos basta simplesmente pensar ou responder a por quês disto e daquilo.

A filosofia vai buscar por quês, responder a um problema, sem esgotá-lo, por meio de uma reflexão dialética. Entendendo problema como uma “necessidade que se impõe objetivamente e assumimos subjetivamente” (SAVIANI, s.d.:10), veremos que essa é uma tarefa filosófica, ou seja, ir sempre ao cerne do fenômeno que queremos conhecer, apreender. A filosofia não responde com um porque, mas com uma reflexão, aos desafios da realidade cotidiana representados por problemas. Isto quer dizer que a filosofia não nos dará um resposta pronta e acabada, porque o seu fazer é, precisamente, não encerrar as questões mas pluralizá-las para que possamos divisá-la em todos os seus aspetos constitutivos e desdobramentos, bem como perspectivas que delas emergem.

A dialética é a estrutura contraditória do real que tem três momentos construtivos, a saber: tese, antítese e síntese. Ao apreender um dado do senso comum e refletir sobre ele eu vou identifica-lo tal como é, como se me apresenta (momento de tese); vou, então, analisá-lo, buscando seus fundamentos, conhecimentos sobre ele; neste processo terei contradições ou negações daquilo que identifiquei em um primeiro momento (momento da antítese); após essa reflexão terei uma síntese de tudo que foi refletido, só que essa síntese (momento de positividade ou negação da negação) encetará nova tese, que trará nova antítese, que desembocará em síntese e assim sucessivamente.

“..porque na inteligência positiva das coisas existentes ela implica simultaneamente a inteligência da sua negação, da sua destruição necessária, porque concebe todas as formas do decurso do movimento, portanto no seu aspecto efêmero, porque não deixa que nada lhe seja imposto, e é por essência crítica e revolucionária”. (MARX, 1990 : 44).

É por isso que muitos dizem ser a filosofia algo inútil, pois não traz resultados imediatos de conhecimento, não servindo assim para nenhuma alteração imediata de ordem pragmática. Mas a sua utilidade está, exatamente, em nos permitir mais dimensões além das imediatas nas quais estamos mergulhados como indivíduos práticos. Karel coloca que, como indivíduos práticos, nos imbuímos de uma práxis utilitária imediata e senso comum correspondente que nos levam a agir objetiva e praticamente, tendo em vista nossos próprios fins e interesses, por isso o mundo é onde exercitamos nossa atividade prático-sensível criando nossas próprias representações das coisas. Essa práxis utilitária e senso comum correspondente orienta, familiariza e maneja as coisas do mundo, mas não proporciona ao homem a compreensão das coisas e da realidade (KAREL, 1976 :14-16).

Muitos consideram a filosofia, ainda, como algo “de bolso”, algo que se leva na algibeira, para se ter uma vida melhor, objetivando a felicidade, a eudemonia dos gregos. Isto implica dizer que a filosofia será, também, projeto de transformação do homem e de sua vida para algo melhor.

Tentemos, então, clarificar as noções de filosofia que discutimos até aqui.

Inicialmente, diremos que a filosofia é uma reflexão. Reflexão sobre o quê? Sobre o cotidiano da vida, sobre tudo aquilo que assumimos subjetivamente como problema a se pensar. Então, para fazer tal reflexão, eu preciso assumir que ao admirar a realidade (no sentido de para ela olhar tentando compreender algo de sua essência, elementos) sou capaz de agir sobre essa realidade objetivada, admirada. Paulo Freire nos dirá que é precisamente isto a ‘práxis-humana’ , a unidade indissolúvel entre minha ação e reflexão sobre o mundo (FREIRE, 1979 : 25-26).

Então, só faz filosofia quem reflete a vida como um todo a partir dos problemas nossos. Mas esse refletir tem características próprias como a criticidade, radicalidade e a totalidade.

Se a essência das coisas, a estrutura da realidade, não se manifesta direta e imediatamente, como expõe Karel (KAREL, 1976), a filosofia nos fará empreender esse esforço sistemático e crítico para captarmos a coisa em si. Partindo do nosso cotidiano, que é o senso comum, e se dirigindo a uma atitude polêmica, crítica. Criticar será estabelecer critérios para colocar o que queremos entender, apreender, em ponto de crise. Esse ponto de crise é que nos permitirá analisar o nosso objeto em profundidade e extensão. Para isso temos de buscar informações, analisá-las para, então, colocar o que queremos saber em um ponto reflexivo. Então, o meu senso comum se transforma em reflexão quando busco informações e reflito criticamente, a partir dessas informações, confrontando-as. Tudo isto porque a filosofia sempre partirá do senso comum e se tornará crítica pela reflexão.

Quando busco informações sobre algo do senso comum tendo a buscar suas origens, raízes, fundamentos, isso torna a reflexão não apenas crítica mas, também, radical. Se um conhecimento se propõe como tal, mas não foi a raiz, a origem, é um conhecimento ingênuo, que não inclui a compreensão das condições e determinantes que formam aquele objeto, aquele extrato do senso comum, sobre o qual se reflete. Esse é um tipo que geralmente temos, um conhecimento superficial, em que a polêmica não inclui esclarecimento nem possibilidades de negação, essa polêmica é uma postura de exclusão e sem diálogos. Mas quando se busca o cerne, a raiz, assume-se uma postura radical que buscará esclarecer, clarificar e não excluir, nessa procura, a atenção para a indagação dos contrários.

Ao buscar todos esses fundamentos não podemos escapar a outro aspecto da reflexão filosófica que é o da totalidade. Ao pensar dialeticamente, os homens não conseguem ser somente críticos sem ser radicais e vice- versa. Da mesma maneira, não se consegue abordar um problema em sua totalidade sem uma postura crítica e uma atitude radical.

Então, quando coloco o objeto que quero conhecer em um ponto de crise, o que me permitirá buscar sua origem, e o insiro no contexto de onde ele é um conteúdo, eu estou a fazer uma reflexão filosófica, estou fazendo filosofia. Então, a resposta ao nosso tema é SIM. SIM, todos podem fazer filosofia! Mas, por que não o fazem? Por que isso parece interessar a relativamente poucos? Por que o nosso pensar fica sempre estanque ou atrelado ao que é mais ingênuo, superficial? Discutiremos essa questão em outro ensaio. Até lá!

Referências

FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979, pp.25-26.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História, 4 ed., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981, p. 18.

__________, Obras Escolhidas. São Paulo, Martins Fontes, 1978, p. 44.

KOSIK, Karel, Dialética do Concreto, 2 ed., Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1976, pp. 14-16.

MARX, Karl, Textos Filosóficos, Edições Mandacaru, São Paulo, 1990, pp. 14,44.

SAVIANI, Dermeval. A filosofia na formação do educador, Universidade Federal de São Carlos, s.d. p. 10.

Thais Paloma
Enviado por Thais Paloma em 26/05/2020
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