Coronavírus: entre a filosofia e a ciência
 
          Em tempos de pandemia, vivemos, sob os auspícios de cálculos estatísticos e probalísticos e um sem-número de medidores: índices, taxas, porcentagens, trends, curvas e histogramas, debruçados que estamos nas janelas virtuais que dão acesso às informações produzidas a respeito de um allien que invadiu o planeta, com sua lógica e inteligência de material duvidoso. Diante dessa invasão, empunhamos nosso arsenal tecnocientífico, e a ciência se apresenta como o exército capaz de produzir os discursos que estabelecerão a mediação diplomática entre nós e os alienígenas que atendem pelo nome popular de Coronavírus. Mas temos realmente consciência do que consiste o discurso científico? Quais são seus pressupostos? Qual a sua ambição? Esse texto, motivado pelas intrincadas e sinuosas proposições elaboradas pelo meio científico diante do quadro epidêmico atual, pretende refletir filosoficamente sobre as limitações da ciência na compreensão dos fenômenos naturais, e, quem sabe, inspirar , ainda que despretensiosamente, uma nova postura frente ao Covid 19.
          Dentro do contexto da filosofia, pensar filosoficamente o conhecimento científico requer pensar a ciência, primeiramente, como produto do homem e, com isso, a ciência deve ser pensada sob a lente de todo o universo simbólico que subjaz a existência humana. Quando falamos de universo simbólico, em contraposição a um universo físico, estamos nos referindo, especialmente, a uma forma peculiar de pensamento e comunicação, expresso pela linguagem articulada, e seus desdobramentos, capaz de elaborar não só informações sobre o mundo material, mas sobretudo capaz de construir conceitos que o expliquem. Esse universo simbólico, esse mundo ficcional, articulado pela linguagem humana, permitiu o compartilhamento coletivo de narrativas. A esse conjunto de histórias, compartilhadas, corresponde o universo simbólico no qual se insere toda ação humana, inclusive a produção científica.
          A ciência é uma narrativa humana específica que pretende ser capaz de explicar o porquê das coisas, um saber teórico que pode ter uma aplicação prática e que avança de maneira rigorosa a partir de certos protocolos bem definidos. Dentre eles, podemos destacar dois: a experimentação e a matemática. A experimentação não é a simples observação de fenômenos, mas a tentativa de reprodução minuciosa de um fenômeno de maneira controlada. Já a matemática insere-se na ciência moderna como uma linguagem especializada capaz de tratar as informações e dados supostamente obtidos a partir das observações e experimentações científicas. Ambas são técnicas eficazes na construção de narrativas que pretendem resumir uma multiplicidade de eventos singulares naturais, observáveis e demonstráveis, em um sistema explicativo global, e extrair dele conclusões e previsões. Na base dessa ambição científica, encontra-se a ideia de um universo ordenado, lógico e permanente, do qual se possam extrair regularidades.
          Tudo leva a crer que, desde os primórdios, os seres humanos observavam exemplos fragmentários do mundo natural e estabeleceram nexos causais entre eles: a regularidade dos corpos celestes, a sucessão das estações do ano, a previsibilidade do ciclo vital. Essas observações foram a base sobre a qual se erigiu a ideia de um universo ordenado. Mas a mente precisa transpor uma vala gigantesca entre a observação de eventos sucessivos e a inferência de que há uma regularidade universal e fixa entre tais eventos. A experimentação científica, um dos pilares de construção de narrativas científicas, se baseia exatamente na ideia de que há na regularidade observável uma causalidade, ou seja, de que todo acontecimento tem uma causa, e os experimentos científicos têm como objetivo demonstrar tais nexos para exercer algum controle sobre seus efeitos. Contudo, dadas as condições do próprio fazer científico, sujeitos ao fluxo do tempo, a previsão de determinados eventos, a partir de inferências causais pontuais, se baseia sempre em experiências do passado.
          A suposição de que todo acontecimento tem uma causa é um postulado filosófico antigo. Aristóteles, na Grécia Antiga, já afirmava que conhecer uma coisa é conhecer sua causa. Entretanto, mesmo cientificamente falando, essa suposição é somente uma conjectura, uma vez que não pode ser provada. Ela é simplesmente tomada como um pressuposto, um ponto de partida, tanto na ciência aplicada quanto na vida comum. Também se supõe que a causalidade é uniforme, ou seja, as causas semelhantes produzem efeitos semelhantes. Esse princípio, além de também não poder ser provado, suscita a problemática definição de semelhança, de identidade entre os fenômenos. Em consequência, supomos que há uma relação de poder e necessidade nas relações causais, ou seja, sentimos que as coisas têm poderes de realização, como quando atribuímos a um vírus o poder de nos matar ou ao Sol o poder de nos aquecer. Pode ser que a ideia de causalidade constante como regente das relações entre os fenômenos naturais seja apenas uma estratégia da mente humana para mitigar as contingências da existência.
          Para David Hume, um filósofo escocês, do século XVIII, estabelecer uma relação de causa e efeito entre dois eventos é apenas um modo de dar coerência às nossas impressões. Destrinchando os conceitos de causa e efeito, Hume propôs que, primeiro, a causalidade assume a ocorrência de uma conjunção constante de classes de acontecimentos, do tipo se A, então B; segundo, que os acontecimentos ocorrem numa contiguidade em termos de espaço e tempo; e terceiro, que a causa deve preceder o efeito. A adoção do pressuposto da causalidade implica, então, a crença na constância e semelhança entre os fenômenos observáveis e na leitura dos eventos do mundo como uma cadeia sequencial linear. Munidos, assim, com esse modelo de pensamento, observadores humanos modernos que assistam a conjunções constantes de eventos semelhantes, nas condições citadas, tendem a esperar que efeitos semelhantes aconteçam repetidamente.
          Há um ditado popular que professa que “ A exceção confirma a regra”. Essa é uma máxima que, sobretudo a partir da modernidade, valorizou a capacidade humana de elaborar mega narrativas para dar conta da complexidade do mundo, em detrimento de qualquer evento, fenômeno ou ser, que não se encaixasse nos sistemas estruturados de saber criteriosamente construídos pela ciência ao longo do tempo. O filósofo Karl Popper, em A Lógica da Pesquisa Científica ( 1934), parece ter entendido a máxima sob um novo ponto de vista. Buscando distinguir o conhecimento científico das demais formas de conhecimento, Popper formulou a ideia de que a confirmação de uma hipótese por métodos científicos não é uma forma válida de comprovação: provas cumulativas e resultados experimentais repetidos meramente aumentam a probabilidade de que a proposição esteja certa. Postulando o princípio da falseabilidade como o critério para a determinação do caráter científico de uma proposição, o filósofo afirma que somente se puder, em princípio, ser desmentida uma teoria poderá ser considerada cientificamente significativa, e são as tentativas de refutá-la que lhe dão maior validade.
          As teorias psicanalíticas freudianas e a Teoria da Evolução de Darwin, para citar apenas as mais conhecidas, são nesse diapasão, segundo Karl Popper, sem fundamento científico, já que não há, no momento, como refutá-las ( em termos experimentais). Radicalizando esse ponto de vista, Popper afirma que só aceitamos a lei da gravidade proposta por Newton, como uma proposição universal, não porque é possível provar que a maçã jamais cairá para cima, mas porque isso nunca aconteceu até agora. Em outras palavras, o que Karl Popper parece estar sugerindo é que a ciência não é senão um ensaio de tentativa e erro, e que os enunciados emanados no âmbito científico são apenas leituras técnicas do mundo e, por conseguinte, limitadas às condições histórico-sociais do empreendimento científico.
          De tudo o que foi explanado, ficam, então as seguintes considerações, acredito que úteis para tempos de pandemia: a ciência e suas tecnologias são um modo recente, restrito e circunscrito de conhecimento da realidade, e seus pressupostos e instrumentalizações – a ideia da existência de um universo ordenado e regido por relações de causa e efeito que possa ser expresso matematicamente- expressam apenas nossas formas atuais e habituais de pensar. Reconhecer essas limitações do campo científico é uma habilidade necessária para lidar com um mundo complexo, variado, interconectado e cada vez mais inédito, quem sabe até retomando, ainda que em outro nível de consciência, o provável assombro e perplexidade das mentes de nossos ancestrais arcaicos diante da abundância e exuberância da natureza, para as quais tudo era inédito, ou melhor, nada era; e, portanto, tudo merecia crédito e que  não existiria nada que fosse impossível ou absurdo. Na expressão de um recantista:
 
          Há uma busca secular por qualquer coisa que mitigue o caos.
          O homem escrutina a natureza. Faz de tudo para acalmar
          seus desassossegos.
          Mas ninguém sabe. E nem nunca saberá.
          O melhor antidepressivo natural atende por seu nome.
          Sem tarjas. Dose plena. Exclusivamente para o meu uso diário.
Celso Jr. In https://becruel.blogspot.com/