O QUE É LITERATURA? (Uma introdução antes da alucinação)

O que é literatura? Eis uma pergunta capciosa. Simples, no entanto, capciosa. Uma pergunta que nos permite as mais variadas respostas, desde as mais variadas perspectivas até as mais variadas definições. Há respostas aos borbotões até. Mas como respondê-la?

Bem, pode-se dizer que literatura é arte. A literatura, assim como a música e a arquitetura, é uma das formas que o ser-humano encontrou para expressar-se, deixar sua impressão digital no mundo, compactuando-se com a realidade e fazendo-a sua, tal qual um deus-criador. Mas, enquanto na música o ser-humano utiliza-se dos sons para expressar-se, e na arquitetura utiliza-se das formas com o mesmo objetivo, na literatura o homem utiliza-se das palavras como canal expressivo. Na literatura as palavras são um recorte ressignificante do real.

Pode se dizer também que a literatura é a arte das palavras, pode se dizer que literatura é a arte de modificar a realidade através delas, literatura é a arte de criar e recriar a veracidade, através dos vocábulos e intenções. Pode se dizer, assim como os gregos, que a literatura é uma imitação instintiva e inevitável do ser-humano, com a qual ele adquire seus conhecimentos e, juntamente, o prazer.

Etimologicamente, a palavra literatura deriva do latim, da palavra LITTERA, que significa letra. Mas, apesar de a literatura ter se tornado possível com a escrita, isso não significa que surgiu com ela. A literatura, dizem alguns estudiosos, tem origem rupestre, dos tempos das cavernas. As primeiras narrativas eram orais, e isso já era o embrião da arte literária.

Há outros estudiosos que delimitam a origem da literatura com os textos mesopotâmicos surgidos há milhares de anos antes de Cristo, com os poemas de Gilgamesh e produções babilônicas e etc. No entanto, não há uma data específica.

A arte literária para os gregos era mímese. E mímese é uma palavra grega que significa imitação ou representação, ou seja, os gregos antigos viam a literatura como uma imitação da realidade, uma ressignificação da realidade a partir da criação.

Para Platão, a literatura (arte) era uma imitação da imitação, pois Platão carrega consigo a sua dualidade platônica, de mundo real e mundo sensível, e esta dualidade é corroborada com a perspectiva do Belo que os gregos cultuavam e que definia claramente um ideal de perfeição.

Platão entendia a arte, de forma geral, como num plano inferior ao Belo, e apesar de ser indispensável para o autoconhecimento do ser-humano, tinha que vir com uma finalidade pedagógica e moral.

Mas, permitam-me um devaneio fantástico e vejamos o que seria a literatura para quem a fez com maestria.

Sejamos compreensíveis e de boa vontade, e vamos supor um diálogo rico e sobrenatural com esses criadores incríveis.

Começa o devaneio:

ANFITRIÃO:

- Mas, e quais as outras tantas perspectivas possíveis? Quais os outros pontos de vista sobre literatura?

- É para saber isso que eu tenho a honra de chamar para compor a mesa um representante dual do homem do séc. XVII, adepto do rebuscamento estético e das dicotomias e paradoxos, eis GRÉGÓRIO DE MATOS.

ANFITRIÃO:

- E como contraponto ao excesso barroco, eis a simplicidade exaltada, a volta ao bucólico, eis TOMÁS ANTONIO GONZAGA.

ANFITRIÃO:

- E agora, sentimental e individualista, melancólico, apreciador de temas ligados à morte, chamo à mesa ÁLVARES DE AZEVEDO.

ANFITRIÃO:

- Para este , a morte não é a mesma de ÁLVARES DE AZEVEDO, para este a morte é fria e limita-se à matéria. Componha a mesa, AUGUSTO DOS ANJOS.

ANFITRIÃO:

- E para finalizar e completar nossa mesa, eis aqui um representante da liberdade, dos versos livres e da busca antropofágica do ser. OSWALD DE ANDRADE.

Começam os diálogos:

ANFITRIÃO:

- O que é literatura, amigos?

GREGÓRIO DE MATOS:

- Literatura é dualidade, riqueza de detalhes, ironia e exagero. A angústia do homem barroco está contida na captura da antítese e do paradoxo.

Está contida na aproximação dos opostos em um, e na fusão dos opostos no outro. Na literatura, encontramos o ambiente perfeito para contrapormos conceitos distintos, muitas vezes conflitantes. Céu/inferno, homem/Deus, sagrado/profano, corpo/alma, conceitos típicos do momento barroco.

Jogos de palavras rebuscadas e ideias conflitantes, adornam a estrutura da literatura, a arte com a qual eu me expresso.

TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA:

- Literatura é uma volta, um retorno, uma saída do ambiente angustiante e tenso do barroco, a literatura é uma exaltação ao bucólico, à natureza matricial e à Arcádia, morada do deus Pan.

Na literatura, voltamos aos moldes gregos de valores, à valorização do homem puro e da mulher ideal.

A simplicidade, a tranquilidade, o CARPE DIEM, a fuga do emergente urbano e o retorno para os braços acolhedores da natureza adornam a estrutura da literatura, a arte com a qual eu me expresso.”

ÁLVARES DE AZEVEDO:

- Literatura são as emoções humanas, os amores trágicos e os ideais utópicos. Uma perspectiva centrada no indivíduo, na subjetividade e no sentimentalismo.

É na ideia de evasão desta realidade insuportável, sob o domínio do pessimismo, a literatura, assim como a natureza, serve-nos de companheiras, confidentes e inspiradoras do mais enraizado idealismo.

Literatura também é um refúgio para a angústia, a solidão, o desespero, a tristeza e a frustração.

O mal do século, o Spleen, o individualismo, o egotismo e a liberdade formal adornam a estrutura da literatura, a arte na qual eu me expresso.

AUGUSTO DOS ANJOS:

- Literatura é a constatação de que somos matéria, futuros cadáveres, hóspedes temporários deste sofrimento que chamamos VIDA. Literatura é rigidez estrutural composta de temas inoportunos e antilíricos. São os ecos da alma em seus mais profundos pântanos espreitados constantemente pela costureira funerária, também conhecida como a MORTE. Literatura é pessimismo mórbido, apreço ao materialismo e ao sono bruto dos homens, onde este não tem sonhos, somente a certeza fatídica de seu destino orgânico. Estes elementos adornam a estrutura da literatura, a arte com a qual eu me expresso.

OSWALD DE ANDRADE:

- Literatura é liberdade, uma busca por uma linguagem tipicamente brasileira, livres de obrigações estruturais, de versos livres e irônicos. Revisionismo do passado histórico e cultural com humor e paródia, contextualizando a vida sobre vários olhares, contemporâneos e modernos.

A quebra dos padrões estéticos formais unida à tolerância às mais variadas vozes, elemento modernista, faz a literatura. Estes elementos adornam a estrutura da literatura, a arte com a qual eu me expresso.

ANFITRIÃO:

- Realmente, dependendo do ponto de vista com o qual analisamos a literatura, se formos levar em conta fatores históricos e contextuais, essas respostas podem ser das mais ricas e variadas possíveis. Mas, e mais alguém tem outra definição diferente das mostradas por nossos amigos cânones?

CLARICE LISPECTOR:

- Tenho outra definição: Literatura, para mim, é intimismo, aprofundamento psicológico, introspectivo e inconsciente perto do coração selvagem. Fluxos de consciência, memória, tempo e espaço, natureza interior e particularidades subjetivas adornam a estrutura da literatura, a arte com a qual eu me expresso.

PAULO LEMINSKI:

- E para mim, a literatura é uma herança marginal do concretismo, concisa e irreverente, calcada em profundidades orientais, haicais. A literatura une o desapego à formalidade ao rigor formal. O humor, o trocadilho, a coloquialidade e o apelo visual adornam a literatura, a arte com a qual eu me expresso.

ANFITRIÃO:

- Quantas possibilidades de respostas para uma mesma pergunta, não é mesmo?

Mas no fim é isso: Literatura é a arte, uma das, com a qual o ser-humano se expressa.

Bem, voltando à literatura, muito se fala em qual função ela exerce, se serve para alguma coisa, ou se não serve para nada. Esta é uma outra questão que precisa que a análise seja feita sob óticas variadas.

Eu poderia citar Fernando pessoa e dizer “A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida.”, ou até mesmo citar Horácio, quando ele diz “A literatura tem uma função nobre de deleitar-nos ensinando-nos, de deleitar nos tornando melhores e mais cultos”

Em ambas as afirmações fica evidente a função lúdica e a função de fuga da realidade que a literatura exerce.

A literatura pode ser meramente um objeto de prazer, de encontro com o agradável, do sublime com a criação, um elo de afirmação do ser-humano consigo mesmo. Mas literatura pode também ter a função de fuga da realidade, um momento livre das cargas complexas, tensas e pesadas do cotidiano, da vida em si. Muitas vezes é usada como um meio que o homem, este ser citadino, busca para aliviar-se do peso angustiante da vida diária.

Para Aristóteles, a literatura tinha três funções: a catártica, a estética e a cognitiva.

Contudo, no contexto atual diversas outras funções a literatura passou a desempenhar. Desde uma função social e política, retratando a realidade, discutindo valores, denunciando injustiças e consolidando tendências, até a um desempenho puramente estético, com o objetivo de gerar admiração e valorizar a beleza da obra.

A literatura pode ser catártica também, estimular o apreciador a aflorar sensações das mais variadas, mexer profundamente com o leitor.

Na definição de Horácio “deleitar nos tornando melhores”, vemos a função cognitiva, de transferir informação, conhecimento, nos tornar melhores e mais plenos. Conhecedores mais aptos de si mesmo e da realidade que nos rodeia e faz parte.

Enfim, para concluir voltemos a Fernando Pessoa:

“ Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida – umas porque usam de fórmulas visíveis e, portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida”.

Bruno Sousa
Enviado por Bruno Sousa em 11/08/2020
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