Dúvida

De que maneiras os padrões de questionamento espelharam certos tipos de mudança social e identificaram os temas mais persistentes da dúvida? Só a diferença conduz ao questionamento ulterior, à atitude crítica em face das “verdades” recebidas. A dúvida é vibrante em suas recomendações para o bem-viver e igualmente apaixonada pela verdade.

Houve uma crença antes de haver dúvida; mas somente depois da existência de uma cultura da dúvida pode surgir o tipo de interrogação, as razões que traçaram uma tendência à investigação, à metodologia cientifica que se utiliza da própria dúvida para os seus exemplos de perguntas e experiências.

A história da dúvida caminhou paralelamente à das religiões – e das convicções, certezas, ideologias – e sempre o fará. De acordo com o uso comum, o termo “agnosticismo” implica que não podemos fazer racionalmente uma afirmação acerca da existência ou não-existência de Deus. Por que, então, não estender o ceticismo a todos os conhecimentos, ou seja, por que se supõe que os duvidantes sejam céticos apenas nessa questão?

O primeiro registro histórico da dúvida tem 2600 anos. No mundo antigo, as quatro tradições heroicas da dúvida foram erigidas entre os gregos, os hebreus, o Oriente e Roma, num período entre 600 a.C. e 200 d.C. Na história antiga da dúvida, os antidogmáticos livro de Jó e o Eclesiastes clamaram contra a injustiça no mundo. Sidarta Gautama aconselhou um programa de transcendência não-cultuísta e houve uma grande e matizada tradição de ceticismo filosófico.

A partir do mundo antigo, sete projetos-chave da dúvida emergiram: do materialismo à dúvida do crente.

Entre eles, para exemplo nesta reflexão, destacamos “a rejeição moral da injustiça“. Quando a ideologia permanece à parte da justiça, a sede de vingança e por castigo desmedido se aplaca.

Houve uma “idade das trevas” da dúvida europeia no período entre meados do século V, cujo início se pode remontar ao assassinato de Hipácia, a filósofa chefe da escola neoplatônica de Alexandria, celebrizada como a última pessoa a cultivar a filosofia secular no mundo antigo, e meados do século VI, quando o imperador Justiniano fechou o Jardim de Epicuro, a Academia Cética e o Liceu. Felizmente, na mesma época, no Oriente, o zen-budismo infundiu nova vida na dúvida, fazendo-a a sua principal meta. Buda, e o zen, amava a dúvida, celebrando o seu desenvolvimento como uma experiência altamente significativa. Essa dúvida produtiva: “Grande dúvida, grande despertar”.

No inicio da Idade Média, seis séculos foi o lapso de tempo considerado como um período “sem dúvida”. Posteriormente, a própria Inquisição foi um momento reacionário ao retorno da dúvida à Europa, iniciado na altura do século XII, vinda do Oriente Médio através da África do Norte. A história da dúvida assistiu com horror ao cortejo de muitos dos seus mártires. A repressão pela fogueira ajudou a levar muitos a expressões ousadas de ceticismo. Montaigne chegou à conclusão de que, desde que Copérnico subverteu a cosmologia, deveríamos ignorar a ciência, pois tudo poderia ser subvertido novamente.

Mais modernamente, os duvidantes, a começar pelos americanos, foram responsáveis pela indignação com a escravidão, com os julgamentos sumários de feiticeiros e com os missionários que arrancavam dinheiro do povo. Também surgiu o duvidante de saia: as reformadoras, que passaram a sustentar a família e buscar por igualdade e justiça. Muitos teóricos e defensores da democracia e da liberdade de expressão e da igualdade foram, e são, duvidantes.

Na antropologia, na cosmologia, na politica e neurologia, sustentam-se as doutrinas dos duvidantes. Isso não é uma coincidência: os duvidantes quiseram saber como o mundo funciona e esperavam encontrar respostas no mundo em derredor. O cosmopolitismo estimula a mistura de ideais e o incremento da dúvida. O “bairrismo”, o contrário.

A dúvida tem sido uma corrente da cultura humana esposada por figuras tão produtivas quanto Thomas Edison, Albert Einstein, Sócrates, e Jesus. Ao longo da história de dúvida, Demócrito, Epicuro e Lucrécio foram provavelmente as figuras mais consistentemente visíveis. “Questione corajosamente, até mesmo a existência de um Deus”. A dúvida teve muitas outras figuras de destaque (Cicero, Descartes, Schopenhauer, Benjamin Franklin...). São inúmeros os duvidantes.

Sigmund Freud declarou que a psique sadia precisa da

dúvida.

A dúvida expressou-se em diálogos, questões escolásticas, livros, ensaios, relatos da Inquisição, tratados de ciência politica, discursos, poesias, entrevistas e cartas abertas. Houve duvidantes esquerdistas, autoritários, esquecidos, odiados, beberrões, abstêmios e aventureiros.

Esta reflexão permite uma avaliação mais ampla da dúvida. É bom ou ruim descobrirmos que estamos vivendo bem perto dela? Está-se a haver uma tendência a gerar e a popularizar teorias muito úteis.

O mundo atual da dúvida traz consigo uma transferência de serviços e relações, calendários e compromissos do religioso para o secular. Os românticos fizeram da arte uma religião; muitos fizeram da politica uma religião; médicos e psicoterapeutas costumam ser vistos como os confessores modernos.

Com atraso vemos os magistrados fazerem da (sua) justiça uma religião; e deixarem a ideologia imiscuir-se com as convicções e o subjetivismo.

Quando se deixam os questionamentos de lado e se aceita com imensa facilidade que as coisas estejam acima da dúvida razoável, a injustiça e o punitivismo têm o campo apropriado para proliferar, chancelados por quem detém a caneta e o poder de colocar as palavras no papel que vão ordenar as penas e os sacrifícios. Esse negócio do combate essencialmente ideológico, em que agentes do poder formam o seu grupo, a força-tarefa – com entes da Policia Federal, do Ministério Público e, sim, da Justiça – não pode dar em outra coisa que não o seu próprio sectarismo, que aceita como verdadeiras as histórias, os rituais e as regras que lhes convêm, como se fossem a sua própria religião.

A DÚVIDA NÃO CABE!

Há quem tema, pelo bairrismo dogmático e doutrinador, um período localizado e ainda não estimado de escuridão. Há quem veja, mais ampliadamente, um estado de exceção, não com os clássicos ditadores civis ou militares: mas num novo formato; e isto talvez seja o mais ameaçador e sinistro.

Não há predação para o ser ainda desconhecido.

Neste exato momento em que vivemos, temos visto a prolação de sentenças em processos criminais que não estão verdadeiramente fundadas em provas reais, segundo a definição clássica da prova, de A. Colin e H. Capitant: “Provar é dar a conhecer em justiça a verdade de uma alegação pelo qual se afirma um fato do qual decorrem consequências jurídicas.” O ilustre filósofo do direito Chaïm Perelman muito chamou a atenção que o que se afirma como indício, ou prova circunstancial, pode não ser, muitas vezes, nem evidente nem verdadeiro. É preciso provar.

“Sabemos que a lei é boa, se empregada legitimamente”, disse São Paulo a Timóteo. Roscoe Pound (Justiça Conforme a Lei) observou que a lei, como restrição da liberdade individual, tem de justificar-se.

Muitos juristas de hoje, embora baseados no que está acontecendo recentemente em certos tribunais, exageram grandemente o elemento pessoal, subjetivo e arbitrário existente. Infelizmente é o que se verifica.

“Na ausência dos fatos, a dúvida é a opinião do homem

sensato. (Allan Kardec, Paris, 1857).”

Processos têm se abstraído de colecionar provas clássicas para dar lugar à permissão do Juízo receber como verdades as ilações dos acusadores, repercutindo as suas próprias convicções e, assim, decide pela culpa em conformidade com seus dogmas e com a ideologia do seu combate, da sua guerra. Não cabem questionamentos, desnecessárias as críticas em face das “verdades” recebidas. Está tudo acima de qualquer dúvida razoável.

ACIMA DE QUALQUER DÚVIDA RAZOÁVEL!

Nunca a dúvida, esta grandeza tão cara no desenvolvimento da humanidade foi tão vilipendiada.

“Acima de qualquer dúvida razoável” é bonita expressão que o juízo usa recorrentemente em quase todas as suas sentenças. Pode ser uma bela expressão, importada do jargão americano, mas não passa disso. A situação em que é usada é inversa. Todas as dúvidas possíveis põem-se a favor do réu – PRO REO. Dúvidas em abundância, não superadas, nem “acima” e nem “além”.

Está-se a adaptar um instrumento de qualificação de conhecimento de um tribunal sobre uma prova, para uso monocrático de um juiz de modo arbitrário e subjetivo sobre uma conjuntura. É, ao mesmo tempo, uma usurpação e uma deturpação. Inconcebível.

“Acima de qualquer dúvida razoável” torna fácil para o julgador, mediante uma redação própria para o desiderato condenatório, pular de uma série de supostos e frágeis vestígios sem provas para uma “declaração” de prova robusta.

O que é “acima de qualquer dúvida razoável”, no uso indiscriminado do ex-juiz em Curitiba, senão um escape à apreciação da prova produzida, se não dar fé pública à sua certeza intima difusa e subjetiva – mas não comprovada –, senão mascarar a presunção de culpabilidade?

O que é “acima de qualquer dúvida razoável”, senão uma permissão para ignorar e desconsiderar por completo os argumentos da Defesa, como é tão flagrante nas suas sentenças? Pois, ao ultrapassar os limites da dúvida – ou seja, um julgamento que não tem regramento – apoiado normalmente em ilações, distorções e mentiras do Ministério Público, nada mais precisa ser sopesado. Afinal, não há dúvidas.

“Acima de qualquer dúvida razoável” é a destruição da incerteza, o atropelamento da desconfiança, a implosão da suspeita, imprescindíveis para a real investigação de circunstâncias relatadas e das alegações acusatórias. A proscrição do questionamento. Confere ao juiz um poder acima de qualquer discricionariedade razoável. E, afinal, a questão do que deveria ser realmente importante: concorre a favor ou contra os direitos do cidadão?

Harper Lee em “O Sol é Para Todos”, nos adverte que a lei (americana – e tão ao gosto dos magistrados brasileiros que estudaram em Harvard) fala em “dúvida razoável”, mas, por outro lado, adverte que o réu tem direito à sombra de uma dúvida. Há sempre a possiblidade, por mais improvável que seja, de ele ser inocente. Por aqui, a não menos sábia observação: “Já dizia o poeta que a verdade pode ser inverossímil e muitas vezes o é” (Machado de Assis, em “O Memorial de Aires”, provavelmente parafraseando o poeta e filósofo francês Étienne de la Boétie). Atentar para pensadores de qualidade acima de qualquer suspeita razoável nunca fez mal a ninguém.

Incomoda o fato de serem poucos os que têm manifestado ressalva quanto à adoção – adaptação? – dos chamados “standards” probatórios. Advertem para o cuidado nesta matéria e sobre a necessária fundamentação das decisões, sob pena de nulidade. Com efeito, é a prova que tem que estar acima de qualquer dúvida razoável (IN BUBIO PRO REO) – assim é a formulação de standard anglo-saxônico. Não a persuasão do âmago do juiz. E normalmente é o que ele tem: certeza íntima. Certeza não é verdade. O que é necessário para se passar da certeza à verdade? Fatos, provas.

Se não há prova, não há o que ficar qualificando.

O juiz coleciona cacos para colar com o referido “standard” e satisfazer o seu veemente desejo condenador. Mas o artigo 66 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional e o precedente do STF AP521, sempre citados, não estão a dar licença escancarada ou tolerar o uso indiscriminado do juízo de probabilidade, a converter-se em presunção de culpabilidade.

De qualquer modo, mesmo com todas as tecnicalidades jurídicas que os magistrados lançam mão, dentro das linhas dos seus códigos de processo, não parece que um período de suas certezas dominantes não venha acompanhado de pouca evidência de equidade, fora de nossas cabeças.

À dúvida não se deve renunciar.

O que se espera é que esteja claro que a dúvida tem sua própria história, e que ser um duvidante é um velho e grande compromisso, por sua longevidade e fidelidade, por vezes inflexível, à verdade demonstrável.

E à JUSTIÇA.

Graco Jakal
Enviado por Graco Jakal em 14/09/2020
Código do texto: T7063370
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