OS ATEUS E A ESPIRITUALIDADE (A opinião de um cristão)

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Poucos dias atrás, um colega recantista, apreciado pelas suas valiosas crônicas, publicou um texto onde era citada uma famosa frase do escritor russo Dostoevskij segundo o qual “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Com efeito, segundo Dostoevskij, quem não acredita em Deus não pode ter uma espiritualidade e, portanto, seria um indivíduo amoral se não completamente imoral. Pessoalmente discordo da visão do escritor que, mesmo sendo um gigante da literatura de todos os tempos, pouco sabia de sociologia e, muito menos, de psicologia.

O que segue é um resumo, devidamente traduzido em português, de um artigo publicado em 2007 pelo cotidiano italiano "La Repubblica" cujo autor é Enzo Bianchi, um monge cristão fundador e prior da Comunidade Monástica de Bose (Itália); em 2014 Bianchi foi nomeado, pelo papa Francisco, consultor do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. O título do artigo é “A Espiritualidade dos Ateus”.

«Faz tempo que na Itália o confronto entre crentes católicos e não-cristãos, agnósticos ou ateus é cada vez mais marcado por conflitos e controvérsias que, às vezes, se tornam escárnio e desprezo recíproco. É preciso dizer com franqueza: estamos longe do espírito expresso por Paulo VI com palavras que já foram esquecidas: “Nós dedicamos um esforço pastoral de reflexão para tentar captar nos ateus, no fundo do seu pensamento, as razões de sua dúvida e de sua negação de Deus”. É verdade que hoje o ateísmo militante não é mais vivido assim como o era nos anos ‘60, mas o horizonte agnóstico, agora ainda mais extenso do que então, exige, na verdade, o mesmo esforço dos cristãos para tecer um diálogo que se alimente de pesquisa comum, de escuta, de debate entre visões diferentes. Em vez disso, pelo lado dos crentes as posições são muitas vezes defensivas porque alimentadas pelo medo e pelo vitimismo, enquanto por parte de alguns não-cristãos chega-se a zombar da fé, a afirmar que os cristãos são incapazes de ter uma ética, que a fé fomenta o integralismo, a intolerância e a violência. De um lado veementes ataques contra os cristãos; do outro, falta de compreensão e até a demonização de quem “não acredita”, julgado ser “incapaz de moralidade”. Tanto que, volta e meia, ressoa a frase de Dostoevskij: “Se Deus não existe, tudo é permitido!”.

Mas então, é viável um diálogo convicto, respeitoso, capaz de ser também fecundo? É possível para quem não acredita confrontar-se com os cristãos a respeito de questões sobre o significado da vida? É possível que o caminho da "humanização", essencial à humanidade para não cair na barbárie, seja percorrido juntos? Entretanto, para que este caminho se abra são necessárias algumas condições que vou tentar delinear. Agnósticos e ateus não acreditam em Deus, não se sentem envolvidos nesta presença porque não a sentem real, mas estão cientes de que, pelo contrário, as religiões que professam Deus fazem parte da história humana, da sociedade, do mundo. Destarte, assim como eles não encontram motivos para acreditar, outros os encontram e ficam felizes: uns pensam que este mundo lhes baste, outros se sentem satisfeitos com sua fé. É bem por esse motivo que podemos afirmar que a humanidade é uma só, que religião e irreligião fazem parte dela e que, em todo caso, é possível, tanto para os crentes quanto os não-crentes, o caminho da espiritualidade.

A espiritualidade não num sentido religioso estrito, mas como profunda vida interior, como fidelidade e empenho nas coisas humanas, como busca de um verdadeiro serviço aos outros, atenta à dimensão estética e à criação de beleza nas relações humanas. A espiritualidade, acima de tudo, como antídoto ao niilismo que é o plano inclinado que leva à barbárie: niilismo que crentes e não-crentes mais deveriam temer pela sua força de negação de qualquer projeto, de qualquer princípio ético, de qualquer ideologia. Infelizmente, esse niilismo é frequentemente definido como relativismo, acabando por confundir a linguagem do diálogo e do confronto e levando à incompreensão mútua. E é o próprio niilismo que, paradoxalmente, pode assumir a forma de fanatismo em que há certezas absolutas, dogmatismo, intolerância que cega ao ponto de fazer com que uma pessoa seja disposta a morrer e a matar.

Não ao niilismo, portanto, mas então surge a urgência de reconhecer a presença de uma espiritualidade também nos ateus e nos agnósticos, capazes de mostrar que, mesmo que Deus não exista, nem por isso podemos fazer qualquer coisa: pessoas que sabem escolher o que fazer com base nos princípios éticos dos quais o homem -como tal- é capaz.

E a grande tradição católica pede aos cristãos que reconheçam que o homem, qualquer ser humano, precisamente porque, segundo a nossa fé, foi criado à imagem e semelhança de Deus, é "capax boni", quer dizer, capaz de discernir entre o bem e o mal em virtude de um selo indestrutível colocado em seu coração e da razão de que é dotado. Realmente, também quem não acredita sabe lutar contra o horror, a violência, a injustiça; tem condições de reconhecer "princípios" e "valores", de formular direitos humanos, de buscar o progresso social e político por meio da autêntica humanização.

Trata-se, para todos, de ser fiéis à terra, fiéis ao homem, vivendo e agindo humanamente, crendo no amor, palavra hoje tão abusada e muitas vezes esvaziada de sentido, mas palavra única que permanece na gramática humana universal para expressar o lugar para o qual o ser humano se sente chamado. […] Gostaria que nós, cristãos, pudéssemos escutar ateus e agnósticos, pudéssemos enfrentá-los, sem inimizade, principalmente através da comparação de nossas espiritualidades, daquilo que, profundamente, dirige as nossas ações. O espírito do homem é importante demais para ser deixado nas mãos de fanáticos e intolerantes ou espiritualistas da moda. Claro, toda religião se alimenta de espiritualidade, mas também há espaço para uma espiritualidade sem religião, sem Deus. […] Pessoalmente acredito que haja espaço para uma espiritualidade dos agnósticos e dos não-crentes, daqueles que buscam a verdade porque não se contentam com respostas pré-fabricadas, com verdades definidas de uma vez por todas. É uma espiritualidade que se alimenta com a experiência da interioridade, com a busca do sentido e do sentido dos sentidos, do confronto com a realidade da morte como palavra originária e com a experiência do limite; uma espiritualidade que também conhece a importância da solidão, do silêncio, do pensamento e da meditação.

É uma espiritualidade que se alimenta da alteridade: vai ao encontro dos outros, do outro e permanece aberta ao Outro se alguma vez se revelasse. No romance “A Peste”, Albert Camus escreveu: “Ser capaz de ser santo sem Deus é o único problema concreto que hoje conheço”. Hoje poderíamos parafrasear esta afirmação dizendo que o único problema real é estarmos engajados em uma busca espiritual para fazer da vida humana uma obra de arte, um caminho de plena humanização.

Sim, na França pensadores como Luc Ferry ou André Comte-Sponville, não cristãos e não crentes, propõem uma espiritualidade também para os ateus na luta contra a barbárie incipiente. Por outro lado, aqui na Itália, alguns parecem praticar a arte de ofender a fé dos crentes e negar-se mutuamente a capacidade da ética universal, do humanismo... Continuo teimosamente convencido de que, como seres humanos, não somos estranhos uns aos outros e que portanto, somos chamados a nos ouvir reciprocamente e seguir juntos um caminho de busca».

Infelizmente, apesar da grande sabedoria contida na mensagem de Enzo Bianchi, uma menoria de católicos integralistas italianos consideram esse pensador um ignorante em Teologia e heréticas as suas afirmações.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 12/10/2020
Reeditado em 14/10/2020
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